Carnaval
Gostava muito da prima Ana, um ano mais nova, porque passávamos as férias grandes em casa da minha avó. Também nos encontrávamos nas pequenas férias escolares do carnaval, que nesse tempo duravam quase duas semanas: a avó era viúva e tinha quatro filhas, as minhas tias, e um quinto filho, o mais novo, que era o meu pai. Juntavam-se todos no carnaval e no Natal. Assim foi em 1968.
Não me recordo de como decidimos (eu e a Ana) criar uma fantasia para o desfile de carnaval. Só me lembro mesmo do trabalho que tivemos para levar velhos vestidos da avó para a garagem (a casa era enorme e tinha pátios interiores e adegas que ninguém usava e quartos que nunca mais acabavam). Também não posso precisar em que momento o meu irmão mais novo foi arrastado para o plano. Em vez de contar pormenores que a minha memória possa ter inventado, mais vale explicar que fizemos três vestidos minúsculos de espanholas (deviam estar toscos e mal acabados), cortados a partir dos vestidos antigos. Depois, usámos as pinturas (o baton, o rouge, as sobrancelhas, o pó de arroz) que a avó tinha numa gaveta. E lá fomos para o desfile, que atravessava a vila: eu, a Ana e o meu irmão mais novo com fantasias de espanholas, incluindo cabeleiras postiças (cortámos um casaco de peles da avó), inventámos umas castanholas e pintámos muita cor nas caras.
O desfile de carnaval era na parte alta da vila e tinha carros alegóricos, grupos folclóricos e banda de música, que era o que eu preferia. Nós as duas misturámo-nos no cortejo, e cada uma segurava uma mão do meu irmão mais novo. Assim andámos alguns cem metros no meio do desfile. Apetecia-me muito dançar e foi o que fiz; com o entusiasmo, larguei a mão do miúdo e penso que a minha prima terá feito o mesmo.
Só me lembro de, no meio da música e da alegria, aparecerem duas das minhas tias e, depois, a cara muito aflita da minha mãe. Parece que andaram bastante tempo à nossa procura e mais alarmadas ficaram quando perceberam que tínhamos perdido o rapaz. Quase pararam o desfile, com a gritaria. O miúdo fugira na direcção inversa, à tonta, com aquele seu andar perplexo e a mancha de cor do vestido de espanhola, num cor-de-rosa choque que se confundia com o caleidoscópio de confetes, balões, foguetes, fantasias e bailados (incrível, a rapidez com que ele explorara toda a parte oriental da vila!).
Reunida a família, lá fomos vila abaixo. A tia segurava pela orelha a prima Ana, que chorava abundantemente; a minha outra tia também me segurava pela orelha, mas eu ainda não chorava (que mania tinham elas, naquele tempo, de puxar pelas orelhas das crianças!). A mãe levava o meu irmão mais novo ao colo e estava tão nervosa que ele se pôs a chorar, sem saber porquê.
Foi penoso, aquele pedaço de caminho, até casa. A mãe não parou de ralhar comigo, não por ter destruído os vestidos e a pintura, não por perder o meu irmão de vista, mas por o ter fantasiado de espanhola, a ele, um rapazinho de quatro anos.