11.2.06

E depois o silêncio

Não conseguia lembrar-se mas tinha a certeza de que a conhecia. Não havia, claro, forma mais arcaica de começar uma conversa: «Tenho a certeza de que a conheço de algum lado», diria. E, no mínimo, obteria uma gargalhada como única resposta à mais vetusta linha de engate da História.

Tentou situá-la nos múltiplos territórios da sua vida: Diferentes cidades e cenários, diferentes empregos e amigos que apresentavam por seu turno outros amigos. Mas a cara - e o corpo - não pareciam pertencer a qualquer um deles e suscitar o clique do reconhecimento,a sinapse instantântea entre a imagem e memória.

Decidiu então aproximar-se, para melhor conseguir ouvir-lhe a voz. Ela dizia: «Queria embrulhado para oferta por favor». E então recordou-se. Foi transportado para outro continente e um tempo que se forçara a esquecer. Compreendia agora que o corpo não fosse aquele, porque ela tinha apenas oito anos e ele sete. Os dois, no relvado à beira da piscina do Hotel Polana, deitados lado a lado e as mãos explorando os calções de banho coloridos sem sequer saberem porquê. Chamava-se Patrícia e a cara continuava igual a quando a deixara antes de embarcar no avião, os pais os melhores amigos antes da partida forçada: Loura e sardenta.

A memória dela arrastou em cadeia milhares de outras, um turbilhão de pequenos filmes em Super 8, um álbum de polaroids desvanecidas pela tempo. E ele, paralisado, permaneceu na loja vendo-a pegar no seu saco, uma pequena campainha tinindo quando a porta do antigo estabelecimento se abriu para ela sair. Um único som. E depois o silêncio.

9 Comments:

Blogger Xixao said...

Pena não lhe ter falado...Ela teria adorado revê-lo!

2:40 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Quando lemos os dois primeiros paragrafos esperamos qualquer coisa de normal, amigos que se reencontram, ou mesmo amantes que se revêem... Mas afinal... deixou-a a ir, será que as polaroids estavam assim tão desvanecidas? ... Parece que sim.

* * * *
Gosto da maneira como consegue enquadrar uma pessoa num tempo e sobretudo num lugar.

2:48 da tarde  
Blogger João Villalobos said...

Pois. Os textos aqui têm de ser curtos e um final assim era a solução mais preguiçosa. Se acontecesse comigo, não ficava parado de certeza ;)

5:18 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Entao para a proxima, faz em capitulos ;) lol sabe melhor. Ou deixa o final assim, em aberto.
lol
e eu ando tão critica.. :\
Peço desculpa pela invasão. começam a responder aos comments todos e depois uma pessoa acha-se dona e senhora :\ (no sentido figurado, ãmh?!).

* * * * *

8:40 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

* Entao para a proxima, pode fazer em capitulos (desculpe.!)

8:41 da tarde  
Blogger João Villalobos said...

Bom ritinha, nós estamos cá é para ser criticados :)
Quanto ao tratamento, escolhe/a o que quiser/es ;)

11:23 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Gosto de histórias com fins preguiçosos. Mesmo que "a realidade ultrapasse a ficção", somos muitas vezes preguiçosos e deixamos passar momentos que, depois, remoemos culpabilizados.
Folhetins... porque não? Sigo com muita tenção os de Maria Velho da Costa, no bombyx mori.
Gosto imenso dos vossos textos.

11:05 da manhã  
Blogger Maria Carvalhosa said...

Caro João,
julgo que se me tivesse cabido determinar o final, também teria escolhido o silêncio, dado que se trata de um pequeno conto. Caso contrário, teria que o deixar crescer até vê-lo transformar-se num romance o que, convenhamos, representa um enorme esforço, uma pesada "carga de trabalhos", completamente antagónicos à predisposição para a preguiça, que, ao invés, nos permite ir escrevendo pequenos contos, descomprometidos com continuidades e que, ainda assim, nos apaziguam o espírito, porque nos aplacam os ímpetos decorrentes da necessidade de criar e nos deixam mais leves... com alguma sensação de missão cumprida. :)
Beijos.

P.S. Nestes casos, a eventual concorrência de uma certa má consciência associada à preguiça não chega a ser, sequer, incómoda, porque faz parte de um "modus vivendi". Falo por mim, claro! ;)

10:52 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

E depois do silêncio, os despojos. As lembranças de regresso aos recantos esconsos da alma e, nós, de embrulho na mão, pela rua, pela vida. Incapazes do gesto que nos pode mudar a existência. Ainda que um grito surdo corra atrás da Patrícia, loura e sardenta, do Polana, de África, da infância, do mundo antes da partida forçada.

11:41 da manhã  

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