20.2.06

Na praia

Os calhaus na praia pareciam pérolas, pois brilhavam ao sol, ainda molhados pelo estender da maré. Helena olhou para o horizonte e viu uma fracção do bote, a lutar no meio das ondas, entre cristas mais altas do que a minúscula quilha, as frágeis figuras dos três homens mais parecidas com bonecos, daqueles que decoram a montra das lojas e que não têm movimento, apenas aparência de vida.
Foi ao pensar que o barco se virara, porque desaparecera na cova da ondulação cinzenta, que Helena pensou, numa voz interior que lhe gritava, e com o coração parado, que António era um estorvo na sua vida.
Chegavam as mulheres à praia e ouviam-se gritos, no meio da maresia dura. O barco flutuava ainda, mas em perigo imenso; reaparecera erguido pela água, a não mais de cem metros da rebentação, numa dança com o ar; era como se os pescadores fossem artistas do circo, em equilíbrio incerto, suspenso num fio alto; de braços abertos, como que crucificados no nada.
Agora, o sol escondera-se. O rugido do mar juntava-se em coro ao ruído da tempestade e o vento arrastava o barco para fora. Os três homens pareciam perdidos. Tinham ficado mais pequenos e a gritaria na praia aumentara. Helena pensou em António, que deveria lutar ainda. A fúria dele devia ser quase igual ao terror daquele mar e os braços grossos que tantas vezes usara para lhe bater tinham a força das ondas. O pensamento regressou, como se fosse arrastado pelo refluxo do tremendo oceano: António era um bruto, ela nunca o amara, que se afundasse então.
No bote, em desespero, alguém se lançou à água. Os outros náufragos imitaram o gesto. E Helena viu que o primeiro que se lançara era o seu António, que decidira enfrentar de caras a morte e tentar tudo, até ao fim. Os braços dele pareciam remos a romper a água, persistentes e regulares.
Um dia, embriagado, ele batera-lhe de tal maneira que as velhas da aldeia a tinham tirado de casa. Ficara sob a protecção dos tios durante uma semana, até que António, pressionado por toda a gente, reaparecera, submisso, a pedir desculpa, a implorar-lhe que voltasse. O que ela fizera, por não ter alternativa. E as velhas, iludidas, diziam que a partir daí estaria segura, que o marido aprendera a lição.
A água enfurecera-se, sob o impulso de grossas nuvens e rajadas de vento. Então, os gritos na praia cresceram, quando um dos homens desapareceu na água, uma boca ainda a pedir socorro. Depois, foi o segundo homem a perder o duelo.
Restara António, que cobrira um terço da distância, que poderia ser salvo se avançasse ainda quarenta metros. Os seus braços martelavam as ondas como se fossem nada, a cabeça emergia num compasso, com a regularidade das marchas que a banda da vila tocava. E, no meio da gritaria, Helena rezou, que se afogue, senhor, que se afogue, pois que só a sua morte me liberta.
Foi então que o ritmo das braçadas diminuiu, até se tornar um desconchavo caótico de um braço após o outro. A corrente arrastara o pescador vinte metros para o largo e o cansaço tomou conta do resto. Houve ainda uma mão que tentou respirar, fechando-se sobre o ar, como se o agarrasse. E o corpo afundou-se.
Foi no meio de terríveis gritos que Helena percebeu a prece que fizera. E uma horrível culpa, mais opressiva que o medo, mais forte que o mar e mais destruidora que o ódio, tomou conta dela, numa prisão perpétua.

Etiquetas:

11 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Prisão pertétua diria eu, para a pena de morte a que o António foi condenado.

Não sou a favor de homens como esse. Mas mulheres que rezam para pedir o mal dos outros, não ficam muito atráz dos homens que batem. Alias, é cobardia. Existem tantas formas de contornar o problema.

Que aconteceu depois a Helena? Segiu a cobardia do seu caracter e emergiu no mar também?.

São os dois culpados!


* * * * * *

1:09 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Este mar cheira a Póvoa de Varzim. A um vento molhado de água salgada.
Belo texto, Luís. Um abraço.

5:01 da tarde  
Blogger isabel said...

O texto está belíssimo.
Boa semana

5:21 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

A culpa é uma prisãp perpétua. O texto é arrebatador.

5:55 da tarde  
Blogger luisnaves said...

Obrigado pelos vossos comentários e também pela visita. O conto tem, de facto, um cheiro a Póvoa do Varzim, como bem notou o Rui. Concordo com o comentário da Ritinha, mas a ideia era lembrar que todos nós, pelo menos uma vez, já sentimos culpa por coisas que desejámos. Ao carregar tal culpa, Helena terá um futuro difícil, mas claro que esse é outro conto.

6:10 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Mas, amanhã, a tempestade terá passado, e qd o sol voltar a brilhar, Helena respirará o cheiro a mar salgado sem que a sombra de António escureça o horizonte azul.
Gostei mt, Luis Naves.

1:07 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Este Helena é tão humana! Ao desejar a morte de António, com quem a vida era um pesadelo do qual não conseguia fugir, foi mais um grito de desespero. Foi um momento de loucura cega, de ânsia de liberdade de uma mulher que se adivinha estar cheia de vida e de sonhos por realizar.
Uma luz ao fundo do túnel, embora não a ideal. Daí os remorsos depois, a tal "prisão perpétua" .
Gostei muitíssimo do texto. Muito bem escrito e extremamente sensível. E que atire a primeira pedra quem nunca teve, nem por um instante, este tipo de desejo em relação a alguém ou alguma coisa verdadeiramente insuportável.

11:04 da manhã  
Blogger Luis F. Cristóvão said...

Gostei do cheiro da Póvoa e da lembrança de uma varanda sobre o mar. Fizeste-me regressar lá, às manhãs em que acordei e esperei ver, pela praia, os vultos das personagens das histórias que ainda estão para chegar.

Um enorme abraço.

11:52 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

O comentário da Sofia diz tudo.
Quantas mulheres não gritam baixinho este desespero, sofrendo, claro, por terem chegado a esta situação,de ânsia, de escuridão total, momentos em que todos fecham as portas, as janelas, o mais pequeno rasgo de luz.
Há encruzilhadas na vida muito complicadas. Não atirem pedras.
O texto é pleno de emoção.
Innie

1:36 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Fantástico Luís, Bravo!!
Revelador de um conhecimento humano aprofundado.
A história está bem encadeada e prende..

Acho que vou procurar os seus livros

Gostei mt do comentário da ritinha.
Uma leitura diferente da óbvia.
..Fez-me pensar..,
é fácil condenar o António..
é fácil ver a Helena apenasc/o vítima..

Também gostei do contraponto da sofia.., completam-se..
..a vida ñ está enfim dividida em "bons e maus"..

Obrigada pelos momentos proporcionados.

1:01 da manhã  
Blogger luisnaves said...

é excelente receber tantos comentários e de tal qualidade

12:09 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home