13.6.07

Tragicomédia a Lídia Jorge

(*texto também publicado em www.bocadosdecarne.blogspot.com)





Foi no Marquês que Lídia passou por mim: a sua pele hidratada, os seus cabelos cor de trigo espetados no pescoço à laia de espadachins de ferro; o seu casaco, o seu corpo de costas. Lídia trazia o DN na mão direita.





Lídia Jorge não me disse adeus e seguia tranquila como se a avenida da Liberdade fosse sua, como se o passeio fosse a imensa continuação das suas magras pernas brancas. Lídia trazia um casaco branco sintético e os meus dedos quiseram tocar-lhe as pontas dos espadachins da cara. No momento em que me viu, Lídia Jorge disse:
- conheço-a?


E uma mulher pequena deixou cair a carteira.



Eu queria tanto tocá-la, Lídia. A sua pele branca a cheirar a jasmim, o seu casaco branco até aos joelhos à laia de dama vicentina que se protege dos outros, o rigor das suas calças pretas, os seus olhos pequenos escondidos atrás dos óculos escuros
(os seus olhos do outro lado da pele)
as minhas mãos a quererem tocar a ponta dos seus olhos cor de lama, Lídia
-eu?




Eu a querer convidá-la para um chá: falaríamos de nós, dos nossos livros, daquilo que pensamos à noite quando nenhum homem entra Lídia, quando nenhum homem nos toca na nossa cama e ficamos só nós: nós como só nós sabemos ser
- Helena de Tróia, Lídia, eu conheço Helena de Tróia






Eu vi-a, eu disse-lhe olá e a Lídia não me reconheceu
- O Forza Leal, Lídia, Moçambique nos anos 60 não pode ser diferente de Moçambique de 2005: a mesma Avenida Lenine no filme da Margarida, Lídia




a Margarida Cardoso a tocar-lhe os ombros na televisão com um casaco que pediu emprestado para a conhecer: eu sozinha no sofá com um vestido preto de seda à espera que a Lídia saísse do ecrã e me abraçasse. A Lídia a dizer
- sim?


E eu a vê-la ir, Lídia, a vê-la ir sem que a Lídia me colocasse a mão na testa, eu sem sentir o seu abraço que cheira a jasmim
(a Lídia não precisa de se aproximar para eu saber àquilo que cheira)
- a senhora não me conhece, desculpe



Eu a pedir desculpa pelo encontrão, Lídia, a Lídia a abraçar-me, a insistir para pagar o chá, as torradas, os brioches. Nós íntimas, Lídia, a Lídia a falar-me das personagens do seu novo livro, a Lídia a dizer-me que gosta de Redfish e eu a jurar-lhe que tem de vir cá a casa conhecer a minha mãe e o peixe que coze no nosso forno aos sábados( o tomate a descansar em cima do redfish com as cebolas e os pimentos, como se todos eles naquele forno fossem uma grande família Victoriana que se reencontra aos sábados)



a Lídia a jurar-me que a minha imaginação é desleal com a realidade, e nós sentadas num afamado hotel da capital a beber chá de maçã vermelha, com toda a gente a ver.






Lídia Jorge atravessou Lisboa a pé, de óculos escuros, como quem sabe para onde ir.

5 Comments:

Blogger joãoeduardoseverino said...

Dedicado à escrita maravilhosa da Inês

Lídia Jorge entra no café
O seu ar altivo, presente, limado

Um café Luanda na avenida de Roma lisboeta com marcas africanas nas paredes
Mesas quadradas, duplas, com torradas e chá para Lídia

E eu ali mesmo ao lado

Lídia folheia inúmeras resmas de papel, escritas, bem escritas de cultura, de vida, de história, de estórias, de romance

E eu ali mesmo ao lado
A pensar que gostaria de lhe dizer que era a pessoa que há meses a entrevistou, via telefone, numa estação de rádio algarvia

Lídia ri, conversa, simples humana de pele hidratada que demonstra amor pelos filhos
Vem a filha, vem o filho, vem o editor
As palavras dedilham-se como notas musicais porque está em causa a revisão das frases, das palavras, do novo romance de Lídia

E eu ali tão perto da nova diva literária, reconhecida pela sapiência literária, premiada pelo que nos oferece de bom

E eu ali tão perto com vontade de lhe pedir um autófrafo

1:17 da tarde  
Blogger Inês Leitão said...

eu não tive oportunidade de ler o seu comentário antes. Deve ter sido dos comentários mais bonitos que me deixaram. Um abraço, Inês

6:43 da tarde  
Blogger Graça Martins said...

Cara Inês Leitão
Permite-me que coloque no meu blog este texto seu que considero tão fresco e solto?
Diga-me se posso.
Um abraço
Graça Martins

7:30 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Adoro os cabelos com cor de trigo e provavelmente a menina não sofria de stress nos cabelos

Estresse e cabelos

5:17 da tarde  
Blogger Sergio said...

gostei. e obrigado pelo elogio ao meu texto (com 3 anos e picos de atraso, sorry).

8:17 da tarde  

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