A memória
“A memória das pessoas é curta e, acima de tudo, selectiva”.
Emmett dissera aquilo com ar pensativo, como se estivesse a filosofar ou a ditar um sermão de pregador. Submisso, Cooper mergulhou os olhos na sua caneca de cerveja, quase toda ela bebida, as paredes de vidro sujas por uma espuma branca que parecia longínqua cortina de neve. Só depois da longa pausa o escritor ergueu a cabeça, num gesto quase dramático. Hesitou algum tempo e depois recuperou a energia:
“Mas...E o passado...Não conta?”, perguntou, com visível angústia.
Emmett tornara-se agora mais profissional, cara fechada, de quem não fazia prisioneiros:
“Conta pouco, Cooper, ou mesmo nada! Os tempos mudaram e tu já pertences ao passado! Os teus livros não vendem.”
Agora, sim, ditara a sentença, pensou Cooper. Emmett fora juiz e júri do seu crime de delírio e vanglória. Não lhe publicaria o manuscrito. E tentara explicar-lhe isso de forma detalhada: que ninguém mais se lembrava dos seus livros antigos, que todas as suas palavras estavam mais mortas do que ele próprio.
A expressão afável regressara à cara do editor, que a partir daí falou de temas inócuos, sem ligar ao silêncio do companheiro de mesa. Ficaram assim mais meia hora. Depois, despediram-se, Emmett quase disse que lamentava tudo aquilo, mas limitou-se a poisar a mão sobre o ombro do escritor. Depois, pagou a conta e deixou Cooper sentado e sozinho, a meditar nos fantasmas que inventara e que, para sempre, se iriam dissipar no vácuo. O tempo largara numa corrida de fundo. Luzes, risos, fumo. Percebeu, com estranha satisfação, que as suas personagens se passeavam no bar e, quando saiu para a rua fria, eram ainda as suas figuras imaginadas que circulavam a seu lado e por entre as pessoas reais, como se tivessem ganho espessura que não lhes planeara jamais, vida autónoma e livre, que ele já não controlava. O alheamento deslizava na noite, no espaço intermédio entre os grande arranha-céus, as ruas singulares, os passeios, o trânsito indiferente, a escura linha das árvores do parque, ao fundo.
Quatro da manhã. Cooper passeava ao acaso e uma poderosa serenidade invadira-o. Tinha o crânio repleto de palavras vivas. Se a memória é curta, pensou, então nós não passamos de ilusão efémera de um passado. Cada indivíduo devia ser aquilo que viveu. E ele, Cooper, tinha excesso de vida.
O seu pensamento foi atravessado por múltiplas recordações, das planícies e dos amores, da alegria e da solidão, do cheiro da terra tocada pela chuva fina.
Chegara ao rio. Em frente, na outra margem, havia uma fileira de prédios altos. A água cintilava ao brilho da lua e notava-se o contraste da sombra da ponte que unia as duas partes de um imenso colar de luzes artificiais.
Cooper estava perante a água. Pegou no manuscrito e lançou-o ao rio, com o sorriso de quem guarda só para si uma derradeira e preciosa lembrança.
Emmett dissera aquilo com ar pensativo, como se estivesse a filosofar ou a ditar um sermão de pregador. Submisso, Cooper mergulhou os olhos na sua caneca de cerveja, quase toda ela bebida, as paredes de vidro sujas por uma espuma branca que parecia longínqua cortina de neve. Só depois da longa pausa o escritor ergueu a cabeça, num gesto quase dramático. Hesitou algum tempo e depois recuperou a energia:
“Mas...E o passado...Não conta?”, perguntou, com visível angústia.
Emmett tornara-se agora mais profissional, cara fechada, de quem não fazia prisioneiros:
“Conta pouco, Cooper, ou mesmo nada! Os tempos mudaram e tu já pertences ao passado! Os teus livros não vendem.”
Agora, sim, ditara a sentença, pensou Cooper. Emmett fora juiz e júri do seu crime de delírio e vanglória. Não lhe publicaria o manuscrito. E tentara explicar-lhe isso de forma detalhada: que ninguém mais se lembrava dos seus livros antigos, que todas as suas palavras estavam mais mortas do que ele próprio.
A expressão afável regressara à cara do editor, que a partir daí falou de temas inócuos, sem ligar ao silêncio do companheiro de mesa. Ficaram assim mais meia hora. Depois, despediram-se, Emmett quase disse que lamentava tudo aquilo, mas limitou-se a poisar a mão sobre o ombro do escritor. Depois, pagou a conta e deixou Cooper sentado e sozinho, a meditar nos fantasmas que inventara e que, para sempre, se iriam dissipar no vácuo. O tempo largara numa corrida de fundo. Luzes, risos, fumo. Percebeu, com estranha satisfação, que as suas personagens se passeavam no bar e, quando saiu para a rua fria, eram ainda as suas figuras imaginadas que circulavam a seu lado e por entre as pessoas reais, como se tivessem ganho espessura que não lhes planeara jamais, vida autónoma e livre, que ele já não controlava. O alheamento deslizava na noite, no espaço intermédio entre os grande arranha-céus, as ruas singulares, os passeios, o trânsito indiferente, a escura linha das árvores do parque, ao fundo.
Quatro da manhã. Cooper passeava ao acaso e uma poderosa serenidade invadira-o. Tinha o crânio repleto de palavras vivas. Se a memória é curta, pensou, então nós não passamos de ilusão efémera de um passado. Cada indivíduo devia ser aquilo que viveu. E ele, Cooper, tinha excesso de vida.
O seu pensamento foi atravessado por múltiplas recordações, das planícies e dos amores, da alegria e da solidão, do cheiro da terra tocada pela chuva fina.
Chegara ao rio. Em frente, na outra margem, havia uma fileira de prédios altos. A água cintilava ao brilho da lua e notava-se o contraste da sombra da ponte que unia as duas partes de um imenso colar de luzes artificiais.
Cooper estava perante a água. Pegou no manuscrito e lançou-o ao rio, com o sorriso de quem guarda só para si uma derradeira e preciosa lembrança.
:)Gostei!
Stela