28.4.06

Uma história de amor

Aquele era um promissor dia de Primavera. A carrinha com as raparigas deveria chegar a todo o momento e Adriano caminhava em frente ao Bataclã, mas podia pensar-se que tinha um peso sobre os ombros e os seus passos se afundavam na terra mole. O rapaz estava nervoso, acendia cigarro atrás de cigarro. E se tudo corria mal? Se não havia clientela? Todo o investimento que fizera se perderia. Temia o fracasso, sem dúvida, e a vergonha de perder outra vez, mas temia sobretudo que a aldeia de Vila Fria ficasse na mesma para todo o sempre.
Olhou. Baque no coração. Já chegava da estação de caminhos de ferro a carrinha que o seu sócio, o Carriço, conduzia. A carrinha avançou no fundo de uma recta, saindo do verde pinhal, avançava, branca, como um cavaleiro que liberta.
Carriço travou em frente ao bar, com grande guincho de travões e erguendo uma nuvem de pó. A carrinha deslizara na terra de poeira seca, em namoro com o desastre. Depois, estancou sem mais comentários e Adriano aproximou-se, vendo que lá dentro já se agitava um frenesi de roupas coloridas.
E, então, abriu-se a porta corrida e elas saíram, calças justas, cabeleiras postiças louras, fragrâncias de perfume misturando-se com o aroma bruto do eucaliptal. Desilusão. Eram só três, espantou-se Adriano (em vez das prometidas seis) e o sócio saía do outro lado, fazendo gestos lúgubres, só vinham três raparigas, o que tiraria logo muito do interesse daquele bar perfeito que tinham ambos sonhado, nos delírios de transformar Vila Fria e tirá-la da sua pacóvia sonolência.
As raparigas pressentiram que era Adriano o patrão e perfilaram-se à sua frente, em expectativa silenciosa, que incluía uma espécie de desafio volúvel.
Adriano foi um cavalheiro e mostrou-lhes as instalações: o bar que brilharia na noite do concelho, a casa onde elas iriam dormir e cuja honra seria inviolável, garantia ele.
E, enquanto assim passeavam, numa excitação de palavreado, Adriano foi reparando numa delas, a russa alta. E sentiu uma preocupante palpitação coronária.
Deve o autor deste conto verdadeiro dar aqui numerosos e lamentáveis saltos conceptuais, iludir informações importantes. Afinal, nos tempos que correm, as histórias querem-se curtas e contadas em apenas meia dúzia de linhas.
Adriano escolhera o nome de Bataclã para o seu bar por falta de imaginação. Era o nome que usavam umas personagens da velha novela televisiva, e o rapaz ainda se lembrava desses ecos de uma época feliz.
Mais se conta que a russa não era russa, mas ucraniana; chamava-se Irina e nascera num sítio que até o simplório Carriço conhecia de ouvir falar, onde em tempos houvera uma explosão atómica, tinha a beldade apenas um ano.
Adriano podia ser considerado bom rapaz e o seu negócio consistia em querer animar um pouco o atraso reservado da aldeia. Claro, o projecto teve a oposição das forças vivas, do padre Anselmo e das sacristas. No bar que imaginara não se passaram cenas impróprias para liberais e amantes da vida (pelo menos que este repórter saiba). O famoso Bataclã atraiu a atenção cobiçosa de muitos varões das redondezas, que tentavam rondar as três intrusas, incluindo a bela Irina, como aliás as abelhas fazem em torno de flores radiantes, durante as Primaveras esperançosas. E isto gerava em Adriano um poderoso ciúme, praticamente idêntico ao que Otelo sentira pela bela Desdémona (mas essa é uma outra história, de um senhor inglês).
Enfim, mais se conta que Adriano não dava para empresário. Erguera o seu bar perfeito sem pedir as necessárias licenças e, um dia, chegou a inspecção oficial. As autoridades mandaram fechar o Bataclã e os dois sócios perderam nas multas todo o seu lucro. Carriço imigrou.
Felizmente, existe aqui uma moral, seguida de final feliz: Irina correspondeu à paixão explosiva de Adriano e seguiu-se a reacção em cadeia do amor. Os dois passeavam pelos pinhais, sempre de mãos dadas, como dois passarinhos, ela muito loura e russa, ele já não o perdedor de antigamente. E consta que tiveram criancinhas perfeitas.

Um diálogo

- Estou um bocado farta disto.
- Então porquê?
- É sempre igual. Tudo sempre igual. A vida não me surpreende. Eu não surpreendo a vida.
- Acho que já me tinhas dito isso.
- Também é isso. Digo sempre a mesma coisa. Já não tenho frases novas.
- Talvez seja só uma fase.
- Uma fase!? Que raio de merda é essa, uma fase?! Já não tens 20 anos para dizer inanidades dessas! Vê se cresces!
- …
- Desculpa. Mas isto não é uma fase. A ser alguma coisa é mais um neutro.
- Um quê?
- Um neutro. Como na electricidade, percebes? Há um fio que tem corrente e outro não.
- Queres apanhar um choque, é isso?
- É capaz de ser. Às vezes imagino que tenho um acidente e fico paralisada mas só durante algum tempo. O suficiente para perceber o que ando a desperdiçar e depois tomo decisões radicais e mudo completamente de sentido, de vivência, de sítio e de tudo.
- Também estou um bocado farto disto.
- Mas tu és diferente.
- Porquê?
- Sei lá. Estás sempre com um ar satisfeito, como se te bastasse esta vida.
- Não tenho outra.
- Nem eu.
- E se fossemos sair hoje à noite? Espairecer?
- ...
- Não chores, vá lá!

26.4.06

Um fio de àgua, única ponte,
religa esta terra à tua espera.
Os pés imersos, olhos no céu,
segues o voo das abetardas.

Não chegam os nomes para tantas cores
nem nas palavras cabem, de tão claras.

Se eu fosse um caranguejo numa rocha ao sol, beijavas-me?


Olhar para o relógio do pulso direito em pânico, aterrorizada com o peso do medo, do pavor que ele me dite horas de existência surreal
- vivo com medo que o meu relógio de pulso marque 39 horas e 39 minutos porque 39 horas e 39 minutos não é tempo
é não-existência

39 horas e 39 minutos é jogo, é farsa de minutos que se juntaram para se esquivar à aniquilação que os converte em tempo efectivo : a hora mata minutos em relógios e fui eu quem descobriu o segredo,

eu

eu ontem, eu depois de teres feito qualquer coisa ao meu corpo ou àquilo que resta de nós os dois sem ti; ontem depois de nos teres desapropriado
- ao meu corpo e a mim

ontem, depois de teres dito a-deus para sempre.
Para sempre quando o relógio marcava 39 horas e 39 minutos.


25.4.06

borboletas

acordar e, nos meus olhos, borboletas nos teus cabelos - pode ser do escuro, da música, da conversa - borboletas, presas, e o teu pescoço - branco branco branco - que eu estudo com o vagar das batidas dos dedos no tampo de madeira enquanto com a outra mão pego num copo que se vai esvaziando na medida em que todo em volta fica ainda mais quente.

acordar e, nos meus olhos, borboletas que falam - os teus cabelos - e também uns quantos homens de barbas a subir e a descer ruas, a música na rádio, os teus olhos de encontro aos meus, os meus olhos que fogem à procura de respirar, o teu pescoço - branco luz branco - que eu trago em sonhos que não posso confessar a mais ninguém que me perceba.

acordar e, nos meus olhos, borboletas que sorriem - como sóis, quentes e naturais - amanhã de manhã qualquer coisa de igual, o dia à espera de um sinal, a tua voz no gravador de chamadas, os teus dedos a enrolar papéis, o teu pescoço - luz branco luz - e eu a perceber que mesmo as asas mais pequenas são capazes de te levar para muito longe de mim.

[este texto foi originalmente publicado no blogue mil nove sete nove, abrindo eu a excepção de o publicar aqui também por sugestão do João.]

24.4.06

À primeira vista é Abril. Já quase no fim mas Abril. Com ilhas de malvas por abrir num Alentejo vedado, reserva de caça este Abril. A estrada esburacada em Abril, em recta infinita de pássaros soltos, os pássaros mil deste Abril. À primeira vista é Abril, mas só à primeira. À segunda, à terceira é já outro mês que se chama Maio e também acabou, ainda nem começou.

23.4.06

Lamento de um yahoo

Nunca sofri os ventos da monção e no entanto muito novo atravessei Salgari.
Só depois voguei em direcção a Laputa, Balnibarbi ou Glubbdubdrib e descansei ressequido pelo rum a bordo do Hispaniola.

Sou de outro tempo. Daquele em que os mundos de papel nos acolhiam dentro deles e saudavam-nos em cada regresso com um sonho heróico, nessas noites em que aguardávamos sentindo o pulsar do sangue a cada página.

Todos estes anos e vivi, não uma aventura mas milhares. Cada uma preservada ao alcance de um braço como uma chávena de chá, nesta mesma estante que aguarda o desinteresse dos meus herdeiros.

Anacrónica esta vida, tão rapidamente exposta à inutilidade presente? É possível.

Mas, quando assim o sinto, consolo-me com a resposta à pergunta de Aronaxx: «Quem pôde alguma vez sondar as profundezas do abismo»? Talvez tu tenhas o direito de responder. Talvez tu. Certamente eu.

22.4.06

dos cadernos dos Jisei (4)

1.
a morte não usa guarda-chuva.

2.
os campos inundados
arroz cozido.

3.
suar até onde sobem as encostas.

4.
ter quem nos encontre e diga
lua.

5.
adoeci nesta jornada -
já vejo partir as folhas secas da madrugada.

6.
ter os olhos fechados
o mar inteiro.

7.
a roupa muito pegada
ao corpo que entristece.

8.
ainda que falte uma só palavra
eu sigo

9.
a buscá-la.

21.4.06

Nem tanto ao mar se estende a Vida.
Por vezes, preferimos estar assim:

Não dizer, não olhar, não amar.
Amálgama impura, preta cor ou recusa.
Afinal,
não podemos saborear a dor que não se usa.

19.4.06

do caderno dos Jisei (2)

1.
adoeci nesta jornada -
já vejo partir as folhas secas da madrugada.

2.
amanhece
amarelo
o meu coração.

3.
oiço passos nas folhas -
não vem ninguém.

4.
estender a mão à água,
a boca fechada.

5.
quarenta vezes escrito o testamento
no caderno sem leitor.

18.4.06

A queda

Kumar olhou para as cores do crepúsculo, que cobriam os telhados de Husabad com um verniz de bronze. No fundo, o sereno rumor da vida.
Naushad estava à sua frente, na varanda. Permanecera calado, bebericava o chá, enquanto Kumar descrevia a forma como iludira as patrulhas dos britânicos e, numa das ocasiões, até desafiara um sargento sahib, um homem horrível, vermelho como um pimento e que cheirava como uma doninha, encharcado em suor.
“É natural que as patrulhas te tenham deixado passar”, disse Naushad, a voz nasalada em tom de quem dizia uma tranquila banalidade.
“O que queres dizer com isso?”
“Que és um traidor...!”
Afirmado assim, de chofre, para chocar e não haver réplica.
Kumar não resistiu. Os braços caíram-lhe ao longo do corpo. As pernas perdiam a sua força, distenderam-se um pouco. Sentira um curioso alívio, como que uma libertação, após aquelas semanas de pesadelo. Crescia no ar uma espécie de frescura benévola na tarde densa, as nuvens, ainda iluminadas no topo pelo sol descendente, estavam a reunir-se devagar para a chuvada da noite. Um súbito relâmpago iluminou o horizonte, ainda a grande distância.
“Quanto te pagaram, trinta moedas de prata?”, perguntou Naushad, sem emoção.
Kumar não percebera a alusão. Era um bom muçulmano e muito menos culto do que o advogado.
“Ninguém me pagou”.
Responder assim era o mesmo que admitir a traição, mas Kumar não resistira, impulsionado por uma profunda aversão à ideia do amigo o considerar mercenário. Não tenho preço, pensou, envergonhado, não posso explicar.
“Foi simples! Foste seguido! Deixámos de confiar em ti por causa do pobre Akbar e de Ghulam e dos outros. Não compreendíamos como tinhas podido ausentar-te apenas meia hora antes de serem todos presos. Os eras predestinado, bafejado por Allah, ou tinhas sido tu a denunciar os nossos companheiros. Depois, analisámos as coisas, e sempre estavas tu no lugar ideal para traíres a causa...
Kumar baixara a cabeça. O advogado prosseguiu, como um tigre que segura a presa e a estrangula quase com gentileza, uma certa ternura até.
“Mandámos um miúdo seguir-te. Não o conhecias, não reparaste. E demos com o teu encontro, nas traseiras da mesquita, com o tenente inglês: vocês não falaram mais do que 15 segundos, mas demonstra tudo o que acabo de dizer...”
Ficaram os dois calados algum tempo, a olhar para as nuvens que se acumulavam no céu sobre Husabad. Depois, sem dizer uma palavra, tentando fazer o mínimo ruído possível, Kumar saiu da varanda e da casa de Naushad.
Desceu a alameda, na direcção do seu bairro. Não trouxera a bicicleta e, por isso, teria de ir a pé. A meio caminho, começou a chover torrencialmente e, em poucos minutos, a estrada ficara alagada e, sobre o piso incerto, corria um rio tormentoso, tão feroz como os pensamentos que se atropelavam na sua consciência. Lembrou-se da Reshma, a mulher que amava, e que não poderia desposar; agora era para sempre um traidor do seu povo; seria desprezado, deixado sozinho, a vergonha da família...
E apenas obedecera às ordens de Khalid, o chefe do movimento. Ele dissera-lhe para falar com o tenente, insinuar-se, fingir-se traidor, para lhe dar informações falsas. Mas isso teria de ser um segredo só dele e de Khalid; era misterioso e secreto, aquele homem, capaz de inventar terríveis esquemas que baralhavam os ingleses. Sentiu de repente que tinha de contar aquilo ao chefe do movimento, esclarecer o assunto, ele diria aos outros que não havia traição...
Kumar correu. A tempestade crescia à sua volta.
A casa de Khalid ficava num bairro escuro, mas estava iluminada. À porta, um grupo de guarda-costas. Teve de os convencer, que o deixassem passar, tinha um assunto urgente a tratar com Khalid.
Subiu as escadas de madeira mal iluminadas. Dentro de um gabinete apertado havia vários homens, numa reunião de estratégia. Interrompeu-os. Devia parecer um alucinado, com a roupa a pingar e o desespero na cara. A fraca lâmpada eléctrica oscilava no tecto, criando sombras na sala.
“Deixem-me falar a sós com este traidor”, disse Khalid, com um ligeiro sorriso.
Os outros saíram, um deles ainda perguntou ao chefe, antes de fechar a porta, se tinha a certeza de querer ficar sozinho, e Khalid confirmou, sempre a sorrir, a fazer com um gesto um convite para que Kumar se sentasse em frente a ele.
“Só cumpri as tuas ordens”, disse Kumar, “transmitir as informações falsas ao tenente inglês. Sabes disso! O resto da acusação não é verdadeira. Não tenho culpa de ter saído da reunião meia hora antes de serem todos presos”.
“A culpa é uma ideia distante!”, disse Khalid, sem mover um músculo da face. “Não me lembro de te dar essas ordens!”
Kumar ficou sem reacção, de tal forma ficara surpreendido. A ponto de duvidar se era real o que pensava ter acontecido.
Khalid parecia sonhar:
“Todos nós somos instrumentos do futuro, que precisa de glórias e de chacinas; exemplos do bem e do mal; de heróis, mas também de traidores. E é nessa qualidade que preciso de ti”. Depois, chamou os homens que estavam à porta e disse: “Espanquem este traidor, mas não o matem. Precisamos dele vivo, para que os cidadãos de Husabad tenham a quem apontar o dedo, com ódio libertador”.

É para o menino e para a menina!

Camaradas de blogue, distintas visitas, fãs que sois multidão. Por indicação da universalmente admirada e amada Miss Pearls vou ter a honra de participar, na próxima sexta-feira pelas 18.30H, numa mesa redonda no Palácio Galveias sobre Webblogs, por ocasião das celebrações do Dia Mundial do Livro e do Direito de Autor.

O programa pode ser consultado em
http://blx.cm-lisboa.pt/gca/index.php?id=1057

Mas antecipo desde já que sentar-se-ão também à mesa Francisco José Viegas (origemdasespecies.blogspot.com); Catarina Campos(100nada.weblog.com.pt) e Rui Branco(adufe.weblog.com.pt), com Miss Pearls as herself como moderadora dos meus desatinos.

Esqueçam o caos da saída de Lisboa em início de fim de semana prolongado e apareçam com a vossa contribuição em numerário ou cheque visado. Bem hajam.
P.S. Estou a brincar, a entrada é livre :)

O mágico

O mágico abriu as mãos e em seguida enrolou as mangas da camisa com um sorriso. A rapariga olhava-o fixada no mais pequeno indício, procurando o fio invisível que faria regressar a lógica ao seu universo de origem.

O mágico elevou-se com lentidão no ar, os braços erguidos e as pernas unidas. A rapariga, desesperada, olhou para cima mas ficou encadeada pelo foco de luz muito branca. Quando voltou a abrir os olhos, o mágico tinha desaparecido.

Ainda hoje os pais discutem de qual deles foi a culpa de a rapariga ter desaparecido por sua vez, pouco tempo depois. Numa entrevista a um obscuro canal de cabo, um amigo disse que ela de vez em quando dava notícias, mas que era inútil guardar os postais. A tinta desvanecia depois da leitura e só restava, sempre igual em cada um desses esporádicos sinais, o desenho de duas mãos, abertas, sem linhas.

17.4.06

do caderno dos Jisei (1)

1
a estrada demasiado longa coberta de neve
a mão que treme.

2
um pássaro canta no meu ouvido -
este é o reino do silêncio.

3
quantas pessoas ainda vou encontrar
depois que o leito da minha morte
esteja encontrado.

4
a chuva do oriente
molha-me as faces.

5
adoeci nesta jornada -
já vejo partir as folhas secas da madrugada.

16.4.06

Transpareces quando ris, e nem é preciso haver Sol.
A tua alegria mora onde as casas terminam
e as salinas refulgem resguardadas do Tempo.

Um céptico diria breve esse teu riso
e diáfana a minha fé de para sempre.
Que posso dizer?

Talvez lhe falte o sabor dos diospiros
ao pequeno-almoço.
Ou essa música que tem o perfume das amoras.

14.4.06

Signs

- olha-me nua em cima da cama tua: sou a Pítia de Delfos bebêda, a boca pela qual Apolo se revela, a boca que se rasga sempre que o deus me viola na mostra do futuro a mortais sedentos de segurança no porvir

(…) confessar que faz toda a diferença o facto de haveres decidido morrer assim, haveres escolhido a porta da sala, o lençol, o descuido da limpeza do espaço em que viveste nos últimos três dias.
Ele deixou-te quando ainda lhe sentias a falta, a tua resposta resoluta aniquilou-nos a todos fazendo os meus dois olhos brilharem em lágrimas de orgulho por ter sido essa a causa do teu suícidio:
amor, encontrado morto na sala por enforcamento.


- olha-me nua, a Pítia de Delfos, a boca pela qual Apolo se revela, a boca que se rasga sempre que o deus me viola para mostrar futuros a mortais sedentos de segurança no porvir

o amor que se torna justificação de fins e meios, o amor pelo qual se
come, se anda, se fode
nas horas dos dias que se seguem seguintes, nas horas


amor, essa essência insana da existência humana cravada em nós desde a hora da concepção imaculada do milagre da vida
-tens toda a razão, amado morto; a existência sem amor perde a funcionalidade e deixa de ter sentido


- eu nua sou a Pítia de Delfos, a Pítia da boca rasgada pela voz do deus que em mim dá aos mortais tudo o que lhe pedem

olha para mim rasgada a apontar uma louca consequência fisiológica da tua morte:
todo o enforcado ejacula em post-mortem e tu vieste-te milésimos antes do suspiro final.

Tu, um morto masturbado, um morto masturbado em lágrimas e sémen a escrever no corpo uma vingança de amor debaixo de um solitário prazer invejoso que tiveste sozinho na hora última do teu corpo

- olha-me nua, assim, sou a Pítia violada e sacrificada pelos hexâmetros que os mortais me exigem da boca ensanguentada
eu, nua, sou a Pítia de Delfos de saltos altos num parapeito dum 70º andar a falar de amor aos homens.



13.4.06

day out

o chão quebrou-se a cada passo teu
e agora os buracos pela estrada
vão sendo cheios com água da chuva
e ovos de páscoa.

não há lentidão imaginável
que possa quebrar o segredo
do teu sopro, do teu perfume,
pelos caminhos onde me encontro.

o chão quebrou-se e agora
cascatas de amêndoas fazem toc toc
nos meus ouvidos espantados.
volto, uma vez mais, a casa.

12.4.06

Nota adicional

J. Wimmer não sou eu e posso prová-lo.

Caderno Fúcsia

J. Wimmer traduziu o original grego da Odisseia para melanésio sem que soubesse qualquer das línguas, a sonoridade era o suficiente. Mais tarde tornou-se representante das baterias-auto da marca Tudor para o Alto Volta.
A posteridade deu-lhe (mas a Câmara pode retirar-lha) uma parede amarela encimada pelo seu nome na avenida 24 de Julho. Obviamente alemão, decidiu escrever as suas Obras Completas, embora nesta primeira fase apenas se trate aqui de uma divulgação das suas Obras Escolhidas. O primeiro volume intitula-se «Caderno Fúcsia» e são textículos para uma poesia pobre de raiva. Iremos publicando alguns neste nosso blogue:



Pai
Não fales de murmúrio em salva, nem de saliva o orvalho,
não fales, nem me digas que não, não é um peixe na multidão
é um galo a fazer de chafariz no meio de um archote extinto,
é uma metáfora, disseram-me que um dia contaram a história
e a boca abriu e fechou como se um portão pudesse morrer...

Não fales, porque eu não te ouço, há excesso de silêncio,
e os meus ossos estalam como um jagger septuagenário

não fales, o mundo é atchim por causa das alergias, é, não fales
porque coma trufas ou coma merda, cago o mesmo...

não fales não, um dia escrevi o nome com as sombras dos teus olhos, os velhos
peixes do tejo que não sabem o que sabiam porque não têm memória.

Não fales, nem eu te quero falar de kant no canto e do vai um chope-ou-nar,
sei que o humor não é uma paixão socrática, prefere o rumor cavernoso

Não fales. De que falamos quando não nos falamos?

O iniciado de Bastiak (1)

Tudo começou numa tarde rodeada pela luz e as sombras do crepúsculo em Bastiak, «essa cidade onde o tempo adormece» como a descreveu o poeta cego Iliad Krepak. Aqui, nenhum vestígio do presente se aproxima sequer da cercadura dos passeios, a qual adorna com indecifráveis padrões cada uma das ruas. Nem uma única linha recta parece existir na planta desta cidade que só o acaso, auxiliado por milénios de êxodos, parece ter erguido. Cada percurso é um necessário e sinuoso caminho, uma linha ondulante que primeiro nos aproxima e logo nos afasta daquele que queríamos fosse o nosso destino. Entrelaçados símbolos do infinito que nos transportam quase sempre ao ponto de partida, essa mesma praça principal onde se passou o que, apenas hoje, me é permitido relatar.

Envolvendo a praça, a música de um instrumento de sopro dava ao pôr-do-sol uma tonalidade pagã. As vozes, nessa língua que mesmo poucos estudiosos conseguem dominar, avivavam-se por vezes para logo esmorecerem até se tornarem secretivos murmúrios. Eu aquecia ambas as mãos com a chávena do chá, uma mistura de hibisco, jasmim e outra desconhecida planta cujo efeito se fazia já sentir, a subtil fragrância transportando-me os pensamentos para um país bem mais a oriente, o mesmo onde um poeta bebeu um dia com a sua própria sombra e escreveu os mais belos haikus. Foi então que, sob a pálida e intermitente luz do candeeiro, surgiu um rosto que os reflexos da chama tornavam azulado e a voz me despertou da viagem com uma entoação gentil

10.4.06

Trinta segundos

E ele a dar-lhe... Só então, distraído que estava com os portentos daquela deusa, ouvi finalmente o que Francisco me repetia. “O Anselmo morreu!”. Foi nesse instante que compreendi a informação, com a sensação absurda da notícia se enterrar no meu cérebro como se pesasse uma tonelada.
O Francisco dizia-me aquilo numa altura imprópria. Nos trinta segundos anteriores, enquanto ele se sentava na cadeira em frente, no meio da barafunda do café na alameda do centro comercial, eu distraíra-me a observar uma rapariga: ela tinha um decote fabuloso que revelava o busto perfeito; vestia shorts, as pernas eram esplendorosas, uma dela pendurada sobre a outra, o pé envolvido por um ténis branco a oscilar no vazio, em embalo tranquilo, como se estivesse a ouvir música. O cabelo negro escorria-lhe sobre os ombros nus. Por vezes, passeava o olhar pelo espaço em volta, talvez à espera de alguém. E eu pensei assim, com clareza sibilina: que não tenha um namorado, que não tenha um amante...
E, nesse instante, o Francisco sentou-se na cadeira vazia, na minha mesa, de costas para a rapariga. E disse: “Já sabes?”
Eu devo ter feito que sim com a cabeça, o meu olhar vigiava a gazela; O Francisco ficou pensativo, calado, parecia um filósofo. Pediu um sumo ao empregado e isso ouvi vagamente, por entre o ruído de fundo dos clientes do shopping, que faziam as compras de páscoa.
Depois, ouve uma espécie de turbilhão de acções simultâneas, ou assim pareciam na minha consciência. Um homem passou atrás de mim e gritou qualquer coisa em espanhol, falava para uma mulher gorda que vinha atrás e que resmungou em resposta; mas tinham falado tão alto que me virei por instinto; ainda fazia os cálculos sobre o que acontecera, vagueei de novo pela savana (um tipo alto parecia uma girafa e outro estava pendurado como um gorila); e reencontrei a gatinha, que pegara num livro de bolso e fingia estar atenta à leitura; nisto, juro, ela olhou para mim. Foi um contacto visual directo; devo ter sorrido, pois imagino que ela me sorriu também: O decote enlouquecia-me e a perfeição das pernas...
“O Anselmo, coitado, foi fulminante”, disse então o Francisco. E isto ouvi distintamente.
“O que se passa com o Anselmo?”
“Morreu! O Anselmo morreu!” E aquilo precipitou-se de repente na minha consciência, no exacto instante em que a rapariga em frente movia o cabelo para o lado com a ponta dos dedos da mão esquerda, num gesto próximo do perfeito.
Parecia que me caíra o mundo em cima. O Anselmo era o meu melhor amigo e davam-me aquela notícia no mesmo momento em que me apaixonava:
“Ataque cardíaco fulminante”, explicou o Francisco.
Tinham passado trinta segundos desde que o Francisco se sentara. Enquanto eu meditava no que ele dissera, a deusa guardou o livro de bolso e colocou a mala de senhora ao ombro. Depois, ergueu-se, ligeiramente inclinada, e o peito dela descaía também ligeiramente, mostrando-se na sua glória. Sorriu para mim e avançou por entre a multidão, talvez à espera que a seguisse, sem imaginar porventura que eu já só pensava na morte do meu melhor amigo.

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9.4.06

Santa Apolónia

O homem esqueceu o nome que lhe davam.

A noite esburaca-lhe o coração,
ouve a cidade crescer
virarem-se no sono as carcaças dos automóveis.

Sobre ele as estrelas, mas de que servem?
Por momentos quase recorda o canto das cigarras,
como quando tinha nome e um telefone.

O homem segura o casaco como um lençol
e conhece de cor o horário dos comboios,
o frio semeado sob a pele.

Depois, mais perto,
passos céleres como lagartixas
e sirenes cintilantes.

8.4.06

convite

toda esta maresia e ainda assim
um tempo inteiro onde ficámos a fazer de estátuas
como os antigos faziam de abóboras no meu pensamento-
era eu uma criança pequena pequenina
e chorava para não comer a sopa nunca.

toda este mar e azia e ainda eu
poder contar com os dedos as vezes que me olhaste
durante a noite em que saímos juntos, na mesa ao lado
uns quantos rapazes mais bonitos e mais interessantes
do que eu. a sopa toda dentro do prato.

toda esta maresia, três da manhã?
e cada um para o seu carro, para a sua casa, faz-se tarde
e amanhã, não sendo dia de trabalho, eu atrapalho.
e não eras tu, não, era eu e a minha insistência
outra vez a fazer asneira no tabuleiro errado.

7.4.06

Put your lips like this

Era uma vez uma mulher nua que se sentou para almoçar numa pastelaria amarela e morreu com um bocado de robalo assado a sair-lhe da boca
- o robalo engasgado nela

e o irmão dela que se sentou para comer também nesta pastelaria amarela da Fontes Pereira de Melo em Lisboa, vestido, perto do metro, viu-lhe o robalo estático a puxar-se para sair, e a mulher a asfixiar-lhe os movimentos com uma ginástica inesquecível de gargantas:tudo enquanto

(...) a imagem da verificação analítica da estrurura da linguagem Saussuriana, a imagem da verificação de dados analíticos que (...) me dizem tão pouco ...

e eu aqui na biblioteca a pensar na mulher com o robalo na boca, a pensar em si; a pensar que quer0 que me peça em casamento com um anel de diamantes
- os dois ajoelhados aos meus pés a convidarem-me à eternidade: os dois

a pensar que quando chegar o seu aniversário vou ter consigo ao seu emprego, vou usar os sapatos cor-de-rosa de princesa, vou arranjar o cabelo e fazer as unhas; vou pôr-me bonita à sua espera na entrada, de geribéria vermelha em riste
- ficas bonita de qualquer forma

e não me minta porque eu fico mais bonita assim de vestido preto decotado, de saltos altos de génio, direitinha, elegantezinha de barriguinha para dentro
- eu nunca tive barriga; não me diga que eu tenho barriga

ou tenho mas prefiro acreditar que não.

a verdade é que eu gosto mesmo quando você me mente a sorrir e me traz a esta pastelaria amarela esquecida, onde um dia uma mulher nua morreu com um bocado de robalo na boca.

5.4.06

conto de fadas

aquela mão
uma vez mais amiga uma vez mais
que descia pela tua pele
macia mas não macia tanto assim
era um conto de fadas que eu tinha para ti.

de resto havia pela sala alguma recordação
de um tempo em que outras mãos
mais rudes
te tocavam da mesma maneira
mas talvez com alguma dor a secar na varanda.

aquela mão
aquela única mão amarga
trazendo o teu perfume para os meus dias
a tua pele para o meu pensamento
macia mas não macia tanto assim
era um conto de fadas que eu tinha para ti.

4.4.06

Voar

Que sim, dizia ela. E eu podia jurar que ao fundo aqueles pássaros eram pintassilgos.
Deixei de a ouvir. O vento agitou-me, agarrei-me à terra com as duas mãos.
Que uma mulher pode parar o movimento dos planetas já o sabia. É uma questão de prática, apenas.
Mas que consiga alterar-lhes a sua rota, acelerá-los, isso nem o meu pai me ensinou.
Ela ainda acrescentou algo mais, mas é impossível recordar o que fosse. Estava feliz por haver pássaros e por serem mesmo pintassilgos. Só por isso.
Do que me lembro, é apenas de um corpo que subia, em tudo idêntico ao meu. Subia e ria. Ria e continuava a subir.

Lembro também os pintassilgos. Indiferentes.

3.4.06

Enquanto o vento ampare
cada trémula verdade
ou a vela recorte na sombra
memórias serenas.

Enquanto o sopro acenda,
as palavras serão centenas

2.4.06

A vida passa

A tia Helena trouxera o chá. O bule de porcelana fina, numa elegância contida, que se elevava como uma neblina. E Joana pensou que havia, naquela velha casa, uma estranha quietude, como se fosse uma ilha longe da vida.
“Não sei como consegue ter isto tão arrumado”, disse Joana, quando o relógio de parede acabou de anunciar as horas.
A tia apenas sorriu. Segurava a xícara de chá na palma da mão, um gesto muito dela, que significava talvez protecção de algo frágil ou, por outro lado, uma espécie de distanciamento, o inverso do que Joana pensara inicialmente, era antes a maneira de quem se protegia em concha. De quem dizia “este é o meu mundo”.
Sem se aperceber que atravessava uma fronteira, Joana começou a contar à tia o que ainda não contara a ninguém. Amava o marido e, apesar disso, apaixonara-se por outro homem. Seria possível amar dois homens ao mesmo tempo? Não seria isso injusto para o marido? Mas como deixar aquele novo amor, se o primeiro tinha tantas imperfeições e o segundo parecia um deslumbramento? Foi isto que contou, com os olhos cheios de lágrimas. E, perante o silêncio pensativo da velha, quase se arrependeu. Estava a apoquentá-la! Que podia ela saber destas coisas?
“Uma vez tive uma criadita que partia tudo onde punha a mão. Cheguei a pensar que fazia de propósito”. Foi isto que tia disse, depois daquelas queixas todas. Joana chegou a pensar que ela estava senil. Até a velha prosseguir:
“Quando adoeci, ela tratou de mim. Fiquei a perceber que há pessoas assim, que partem objectos e conseguem colar almas. E há outras que fazem ao contrário, preocupam-se com objectos e, depois, ignoram as almas. E já que falas nele, fica sabendo que o teu marido é boa pessoa!”
“O que aconteceu à criadita?”
“Casou e viveu bem!”
O relógio de parede tilintava de novo. O tempo passava.
“Sei tão pouco sobre si, tia!”
Joana dissera aquilo de forma espontânea, num desabafo. Mas a tia Helena riu-se, corou até, vagamente coquette, como se tivesse recuado sessenta anos.
“Porque se ri?”
“Por nada”.
Passara o instante de encantamento, efeito de misteriosa cadeia de lembranças. A tia Helena regressara à habitual pose entre o frio e o nobre. Disse à sobrinha-neta que a conhecia desde o nascimento, mas isso ela já sabia. Contou-lhe como a vira aos três anos, depois aos cinco, depois aos dez e adolescente.
“Eras tão pequenina!” E depois, sem transição: “Devias vir mais vezes a minha casa!”
“Nunca tenho tempo, tia! A minha vida não deixa!”
Depois, a tia falou de coisas banais. Joana nem a ouviu, pois meditava sobre o que ela dissera, se aquilo se aplicava também aos homens que amara, aos corações que ferira, as ligações que perdera para sempre, por ser tão desastrada.
“Quando disse que sei pouco sobre si, a tia riu-se. Lembrou-se de qualquer coisa. De que se lembrou?”
Houve uma longa pausa, depois a voz quase trémula: “De alguém”.
“E quem era?”
“Chamava-se Francisco Andrade”.
Como se tivesse feito um esforço enorme, a tia Helena ficou triste ou talvez alheada. Também ela passeou o olhar pelos objectos espalhados na sala.
“Porque é que nunca casou, tia?”
“Sabes, Joana? Nós somos parecidas! O Francisco Andrade era um pretendente lindo, com uma carreira estupenda. E que pensei eu? Assustei-me com a felicidade que tinha. Por capricho, achei que podia ser ainda mais feliz do que era e, um dia, rompi o noivado”.
A tia poisara a xícara. Recostou-se na cadeira, as mãos finas entrelaçadas, num gesto desistente, o olhar repleto de melancolia:
“Ele casou com outra! A vida passa, sabes? A vida passa!”

1.4.06

férias da páscoa

ferrugem encontrada no lugar da vida,
era disso que falavas quando chegaste
ao ponto onde um coração rasgado
aparece subtraído aos nomes das mulheres.

fim-de-semana com chuva e ovos moles
depois do carro o tempo todo rádio ligado
e o som das tuas crianças no banco de trás
a contar, uma à outra, histórias de embalar.

sobre as ervas da beira da estrada
um retiro pode ser inventado
aos teus olhos piscos de tanta noite.

sobre as ervas da beira da estrada,
quilometragem infinita dos teus dedos,
memória inacabada de um regresso a casa.