A música das esferas
O Nuno não tem internet, e-mail ou sequer telemóvel. Conheço-o há muitos anos. Os textos que ele escreve não se parecem com nada, pelo menos que eu conheça. De vez em quando vamos publicá-los aqui. Uns mais pequenos e outros mais compridos. Como este:
«Ban coleccionava universos como quem colecciona cartas de jogar, óculos antigos ou bichos da seda. Arrumava todos os universos que havia em caixas de cartão e punha uma etiqueta por fora com a data em que os guardara.
Dava-lhes nomes de pessoas, mas só de pessoas que tinham ido para longe da sua vida, pessoas que tinham desaparecido, pessoas que já não existiam...
Depois, mostrava os universos aos amigos como se fossem deuses, partículas cósmicas que já tinham alcançado a glória. A glória da vida, é claro.
Sempre gostei de uma música que falava desses universos em luta. Era uma música extremamente triste, porque falava do fim dos homens que se metamorfoseavam em deuses que tinham ultrapassado o final de tudo, chegados ao lugar definitivo algures entre a primeira e a última galáxias.
Ban tinha um amigo que era criticado por todos, mas longe de criticá-lo eu entendia que Ban lhe tinha deixado essa ferida como uma porta aberta numa muralha, para poder acolher assim os seus detractores. É que, para escapar ao fim dos traidores e se alcançar a glória dos valentes, tinha de cumprir-se a lei mais excelsa: Pagar o mal com o bem, aprender a dar a outra face, pôr o outro - qualquer que ele fosse - à frente do egoísmo ou qualquer tipo de vanglória.
Chamava-se Luar o pobre do homem, e tinha nas suas mãos a sorte dos universos da parte Sul da Grande Casa. Um lugar ínfimo que espelhava todos os universos que Ban lhe confiara. Na sua pequenês, fazia parte de uma grande rede aonde vinham cair grandes e pequenos sóis, constelações ou galáxias assentes em geografias supra-terrestres.
Ban gostava dos seus universos construídos com rigor matemático, mas tinha uma secreta admiração pelos universos mais improvisados e que tinham em si um lugar para o imprevisto, para o factor risco.
Alguns, baseados em cálculos e regras fixas, denotavam uma força que lhe era desagradável. E então Ban debruçava-se com mil cuidados sobre os universos mais frágeis e periféricos.
O centro de tudo expandia-se numa velocidade vertiginosa, parecia até escapar ao controlo de Ban, que então construia novas estantes para poder aumentar o número de exemplares da sua colecção.
Um dia, no tempo em que os dias já não existiam, Luar perguntou a Ban o que é que este estava a fazer para além de coleccionar universos por essa realidade fora.
Ban respondeu-lhe que, em determinados dias do calendário vigente quando ainda havia dias, tinha formulado uma série de perguntas a cada universo que guardava e tudo o que esperava, de cada um deles, era uma resposta trazida em sons. Dizem que assim foi criada a música das esferas.
Nuno Alves Martins
«Ban coleccionava universos como quem colecciona cartas de jogar, óculos antigos ou bichos da seda. Arrumava todos os universos que havia em caixas de cartão e punha uma etiqueta por fora com a data em que os guardara.
Dava-lhes nomes de pessoas, mas só de pessoas que tinham ido para longe da sua vida, pessoas que tinham desaparecido, pessoas que já não existiam...
Depois, mostrava os universos aos amigos como se fossem deuses, partículas cósmicas que já tinham alcançado a glória. A glória da vida, é claro.
Sempre gostei de uma música que falava desses universos em luta. Era uma música extremamente triste, porque falava do fim dos homens que se metamorfoseavam em deuses que tinham ultrapassado o final de tudo, chegados ao lugar definitivo algures entre a primeira e a última galáxias.
Ban tinha um amigo que era criticado por todos, mas longe de criticá-lo eu entendia que Ban lhe tinha deixado essa ferida como uma porta aberta numa muralha, para poder acolher assim os seus detractores. É que, para escapar ao fim dos traidores e se alcançar a glória dos valentes, tinha de cumprir-se a lei mais excelsa: Pagar o mal com o bem, aprender a dar a outra face, pôr o outro - qualquer que ele fosse - à frente do egoísmo ou qualquer tipo de vanglória.
Chamava-se Luar o pobre do homem, e tinha nas suas mãos a sorte dos universos da parte Sul da Grande Casa. Um lugar ínfimo que espelhava todos os universos que Ban lhe confiara. Na sua pequenês, fazia parte de uma grande rede aonde vinham cair grandes e pequenos sóis, constelações ou galáxias assentes em geografias supra-terrestres.
Ban gostava dos seus universos construídos com rigor matemático, mas tinha uma secreta admiração pelos universos mais improvisados e que tinham em si um lugar para o imprevisto, para o factor risco.
Alguns, baseados em cálculos e regras fixas, denotavam uma força que lhe era desagradável. E então Ban debruçava-se com mil cuidados sobre os universos mais frágeis e periféricos.
O centro de tudo expandia-se numa velocidade vertiginosa, parecia até escapar ao controlo de Ban, que então construia novas estantes para poder aumentar o número de exemplares da sua colecção.
Um dia, no tempo em que os dias já não existiam, Luar perguntou a Ban o que é que este estava a fazer para além de coleccionar universos por essa realidade fora.
Ban respondeu-lhe que, em determinados dias do calendário vigente quando ainda havia dias, tinha formulado uma série de perguntas a cada universo que guardava e tudo o que esperava, de cada um deles, era uma resposta trazida em sons. Dizem que assim foi criada a música das esferas.
Nuno Alves Martins
Posso ser só eu mas... leio ecos do Silmarillion?
So tenho uma coisa a dizer:
" Os textos que ele escreve não se parecem com nada, pelo menos para mim". E pela primeira vez, houve algo do qual nao gostei tanto. Não entendi o proposito da frase. Talvez porque gostei do texto, ou talvez porque acho que isso é algo que nunca devemos dizer. Ou entao passariamos a vida a dizer isso de grande parte dos textos que os outros escrevem, excepto, claro, um ou outro. Tão mal escrito que seria obvio aquilo dizer-nos algo. Se calhar, sou só eu que ainda nao li o suficiente, ou se calhar sou só eu que nao entendo muito bem. Nao sei, mas sou eu que acho isso.
P.s. - primeiro grande comment, alguem me explica porque é que quando criticamos escrevemos muito mais do que quando elogiamos? E eu que odeio essas pessoas e, afinal, sou como elas :\ Pronto: sim, gosto do vosso blog.
*****
Fantástico, excelente, adorei..
parabéns, quero mais..
ò ritinha, algo que se calhar me expliquei mal. Quando digo que não se parece com nada queria dizer "com nada que alguém játivesse escrito". Ou seja, original.
Não era no sentido corrente do termo :)
Ainda bem que gostaste do texto. Eu também! ;)
Ritinha, não posso apostar qual foi o sentido que o João quis dar a essa frase, mas eu quando a uso é sempre como elogio. Foi assim que a li.
Vinha aqui à caixinha de comentários dizer ao João, que um dos meus melhores amigos se nega, até hoje, a ter net e mail, embora em sua casa existam essas coisas (por parte dos irmãos) e embora tenha cedido ao telemóvel. Pinta umas coisas muito bonitas relativamente às quais eu digo sempre que não se parecem com nada :D, e que eu, ao longo dos anos, tenho comprado, pedido e, por vezes, salvo do monte de coisas que ele atira para o lixo constantemente :D:D
Saudações! :)
Demorei tanto a escrever que entretanto o João postou. Yep, também a uso no sentido de original, é por isso que é um elogio.
E parabéns ao Nuno, gostei muito :)
Que texto lindo! E que original, de facto. Adorei.