25.11.06

O meu país - [dia de chuva]

todo este vazio no meio de tanta pressa
enquanto a chuva cai e nos tapa os olhos
e se ouvem gritos e sussurros de quem teme
não ter onde dormir já esta noite. vazio sim
apesar de tanta água a escorrer pelas ruas
e das pedras que agoram marcam as estradas
no caminho de casa que se vê ao longe
porque há um bombeiro que nos segura a mão
e nos impede o regresso onde nos amam.
todo este vazio no meio de tanta pressa
algumas palavras trocadas a medo pelas arcadas
os cabelos despenteados pelo vento que leva a gente
muito mais que aos chapéus-de-chuva destroçados
junto aos caixotes do lixo esverdeados da minha terra.
e onde moram ainda aqueles que já não têm cama
nem um colchão seco e limpo onde sonhar,
aqueles que vêm os livros e as roupas seguir rio abaixo
e se vão sentar às portas de casa quando finalmente
chegar sábado e um sol tímido depois do inverno.
todo este vazio no meio de tanta pressa
como homens velhos de gabardine sobre o alcatrão
e olhares tapados pela água barrenta vinda de nascentes
que agora espalham a tristeza entre os sedentos.
já não há espaço para a poesia neste imenso vazio
que é um rio cheio a levar pontes para o mar,
já não resiste nenhuma palavra nem uma mão
que nos ampare o suor dos pesadelos nocturnos.
resta-nos, não mais que isso, todo este vazio no meio de tanta chuva.

24.11.06

Antes de quê?

E quando começou a escrever sabia o que pretendia. Que se prolongasse assim o calor e a estática electricidade das mãos para sempre, para sempre fosse como antes fora. E aí parou. A força da palavra fê-la deter-se. Entrou nela feita pássaro indesejado, cego, trémulo, pela janela aberta sobre a noite que entretanto se fizera. Antes de quê? E logo a resposta: Antes deste depois que é o agora, morna memória na pele da passagem do Sol.
Reparem, eu não sou mulher. Marta sim e por isso nascida sem a noção de finitude, sem entender o sofrimento e o seu porquê que cresce entre as fissuras e escorre como areia na ampulheta que se vira jamais.
Ou seja, por que tudo acaba, ou diminui ou esvanece? Se um dia é perfeito, por que não o são todos os outros ou, mais ainda, não poderão ir crescendo crescendo e ela cada vez mais feliz em ascendente espiral de encontro a quem sempre quisera ser?
Dir-me-ão:
- Claro que não.
Ou que Marta é jovem e desconhece a vida, sem entenderem que é por ter vivido que anseia por viver, que a idade nada lhe ensinou nem ensina nada a alguém excepto a desistir de ser ou a olhar-se no espelho sem que, do outro lado, uma voz ordene:
- Despe o teu corpo e acorda.
- Olha esta luz, veste esta luz.
Sentir as portas que ninguém abre e por detrás delas quartos de um lado e do outro de um imenso labiríntico corredor, num hotel vazio abandonado e ela de chave na mão, descalços os pés na tapeçaria puída perguntando:
- Onde estão todos?
- Houve incêndio, sinal de alarme que não ouvi?
- Qual é o meu quarto? Onde moro?
E por que mora num hotel abandonado e não numa casa onde alguém ri e a chuva repica na varanda e a lareira aquece o corpo nu, exausto de tanto amar? Ninguém sabe. Eu não sei, tu não sabes. Marta sabe e, por isso, terminada a pausa que a palavra «antes» criou, recomeça. Não quer lembrar-se porque preferia sentir mas recorda e escreve. Aí, sim, é o início da sua história.

20.11.06

Honni soit qui mal y pense

Luísa acordou com o risco metálico dos carros nos carris da rua, o longe que já ia a discussão da noite! Uma seta de sol atingiu-a docemente – docemente. O mundo despertara para um dia novo, e ela nele. E desejou-se bom dia: “Bom dia!”
Ainda de olhos fechados esticou o braço, o esquerdo, e levou a mão, de palma aberta, de paz, ao outro lado da cama. Nada. Levou-a ao de leve, de mansinho um pouco mais além, tacteou. E nada! O braço, a mão, pararam. A doçura da sua cara tranquila apagou-se. Por dois segundos não se mexeu. Mas depois ergueu-se sobre o cotovelo direito. Estava sozinha, metade agora vazia! Então, deixou-se cair.
Os eléctricos pararam, a seta de sol recuou, o frio invadiu-lhe a cama e o corpo, nu, e ela afundou os olhos na almofada, os lábios cerrados por já não terem nem som nem destino. E assaltou-se de soluços por meia hora.
A seguir, deslizou devagarinho a aproveitar o calor que ainda havia, e que se esvaía, cheirou a almofada, beijou-a. O aroma do seu corpo ainda lá estava, encheu-se dele, esfregou-se nele, sentiu que o lençol que lhe cobria as costas era um abraço. Pensou estás cá, estás só a tomar banho, a fazer torradas, saíste só por um bocado, um bocadinho, vens aí outra vez – sou eu, deixa, sou eu que sou de medos! Mas de lado nenhum chegava o cheiro do sabonete líquido de extractos de limões do Caribe ou de pão torrado, nem música do rádio, nem a voz conhecedora dos invernos do amor de Júlio Machado Vaz.
De sobre a mesa do relógio – que anunciava 9h20 –, de dentro de duas molduras despejadas das famílias, de ambas as famílias, das malditas famílias, saíam agora suspiros de alívio. De uma terceira, comprada dias antes, não chegará nunca nada... Na parede um autocolante: Honni soit qui mal y pense.
No mundo novo que acabara de nascer, com setas de sol a atravessarem a janela, a casa esfriava, morria. E ela, nela.
Da rua, timidamente, o risco metálico dos eléctricos voltou, dizendo-lhe baixinho, assim como que por respeito, Luísa, ela não volta, a Irene não volta. Mas olha: o dia é novo.

19.11.06

O pão

Chegou-se à porta da igreja devagar, os olhos grandes, a querer comer o mundo, e ficou ali parado a olhar para nada. Só a olhar. O padre bem viu a fome na cara escavada, nas curvas dos ossos a quererem saltar da pele. Doeu-lhe aquela fome toda a devorar um corpo tão franzino.
Quando lhe estendeu o pão, o miúdo pegou nele com ambas as mãos em sinal de respeito, olhou-o em silêncio e afastou-se para junto dos amigos, no terreiro enlameado. Depois partiu o pão em pedaços e distribuiu-os, sem algazarra. Então, porque a solidão de uma vida se abatesse de repente sobre ele, ou talvez porque a sombra de um nuvem tinha acabado de pousar sobre a aldeia, o padre entrou na igreja vazia àquela hora, sentou-se num dos bancos de madeira, e chorou.

16.11.06

Quando os rapazes desapareceram na cidade

Subiu a avenida a passos largos, o coração a bombear saiam da frente, a fintar os carros, a não reparar nem no sol nem nas árvores a esverdear o tempo. Era Verão e pela primeira vez num dia assim não sorria. E era ainda rapaz…
Virou à direita, com o peito a saltar, a querer ir à frente, um atacador desatado, trocos a tilintar nos bolsos, os olhos a tentarem ver por uma névoa esbranquiçada o caminho e as pessoas – cada vez menos garotas, cada vez menos rapazes, cada vez mais homens e a espalharem-se. Um grupo de gente estranha, calva, a balouçar-se, a cantarolar “hara krishna, hara krishna”.
Por dentro pensava no dia mais negro da sua vida, miúdo, escondido num recanto do jardim, a chorar, agachado, junto de um limoeiro, e ele, como um pai, a sorrir-lhe, a pôr-lhe uma mão no ombro e a dizer a vida às vezes é assim.
Passou a porta e foi em frente, assustou o segurança, que nem disse nada, subiu a dois e dois, arfando, comendo o espaço, chegou ao quarto andar, perguntou pelo gabinete do homem. Ali, ali ao fundo, ao fundo à direita. Olhou-a e já lá estava. Assim como por artes.
Na pequena sala, alcatifada, uma cadeira, dois ou três quadrinhos com diplomas, e, à secretária, ele: magro, olhos azuis, uma cara escavada, o mesmo sorriso daquela tarde do passado, já lá ia a urna para o campo santo. Sobre o tampo, o retrato da mulher e dos filhos, cinco, apólices disto e daquilo, de automóveis, de habitação, de vida, que começou a arrumar com uma estudada calma dentro de pastinhas, que sobrepunha geometricamente num canto, enquanto alinhava com elas um lápis acabado de afiar, uma caneta Mont Blanc, e criava espaço para assentar os cotovelos, e entrelaçar os dedos das mãos, para apoiar nelas o queixo – e o sorriso.
O rapaz sentou-se, ainda com a imagem dela a roê-lo, a doer-lhe. E ele fixo na estátua do marquês, a lutar por calma, ao mesmo tempo que lá em baixo, nas suas próprias névoas, como em casulos, os rapazes se transformavam.

- Cabrão! Grande, grandessíssimo cabrão!

O homem continuou a olhar para a estátua inerte e verde, esquecido do sorriso, que continuava a dizer que às vezes a vida é assim.

Minutos depois – quatro, ou três, ou dois, ou menos –, o rapaz, já quase outro, já sem o tempo a doer-lhe, respirou fundo, levantou-se, sem despegar os olhos do homem, ajustou o kispo, andou devagar até à porta, que saiu e fechou sem pressa, até a ouvir no trinco, voltou pelo corredor a passos curtos, desceu a escada agora a um e um, disse boa tarde ao segurança, contornou a praça, desceu a avenida, a névoa esbranquiçada dissipara-se, voltara o sol. Mas era tarde. Parou numa passadeira e olhou para si, de baixo para cima, sem se reconhecer, depois à volta. Já não havia rapazes na cidade.

10.11.06

Culpa a medo

Medo e culpa, medo e culpa.
E aquela sensação de não haver neste mundo espaço para se ser o que se é
Medo e culpa.
Conheço um tipo que é de uma estupidez desarmante
Medo e culpa.
E uma que tem um dente com musgo que mais parece uma arma para manter pessoas ao largo
Medo e culpa.
Aos amigos em sofrimento não se gritam maus conselhos pela janela de um carro a andar devagarinho
Medo e culpa, medo e culpa.
E nem sequer gosto de clássicos
Medo e culpa.
Sei que mais dois ou três dias e chegará a sorte da Serra. Melhor assim
Medo e culpa.
Certo dia vi-a caminhar cabisbaixa por uma rua sem trânsito, uma rua comprida de casas com quintais de roseiras
Medo e culpa.
Um revolucionário transformado em acomodado é um espectáculo mal-cheiroso digno de se ver

Medo e culpa.
É a isto que eu chamo remar contra a arca de Noé. Não é?
Medo e culpa. Medo e desculpa. Desculpa, medo. Desculpa-me.

8.11.06

teorema de pitágoras

um poema que seja a ausência de mim mesmo no lugar da folha em branco
naquela hora em que começa a chover e todas as outras pessoas
se levantam apressadas das mesas que compunham, no antes do primeiro verso,
uma esplanada situada no centro da cidade em que me encontro.

um poema que seja a falta de palavras no momento em que me sorris,
pessoa que passa pela rua e, no quase encosto de ombro, liberta os músculos da face
fazendo desse desencontro um desejo impossível de realizar, não tanto
pela falta de palavras como pela falta de desejo em si mesmo.

um poema que seja o silêncio, finalmente, a ser dito devagarinho
de tal modo que nenhum de nós dele se apercebe e faz disso, desse silêncio silenciado,
um pedido disfarçado de literatura para as nossas vidas sendentas de histórias
porque de tantas fantasias nelas criadas já não distinguimos o que é ou o que somos nós.

6.11.06

A floresta cor de sangue


Rivaud ouviu um grito e quando olhou para trás, assustado, ainda viu o seu companheiro, Leduc, tombar inanimado. O arqueólogo tinha sido atingido por um insecto e desabara entre arbustos. Embora estivesse nos limites das suas forças, Rivaud correu na direcção do ferido. Descobriu o corpo inerte, o aguilhão cravado nas costas como se fosse uma faca. Leduc agonizava e lançou um derradeiro suspiro, morrendo ainda estendido no chão, sem dar tempo sequer para o jovem biólogo o segurar.
Não havia mais nada a fazer, mas este foi, para Rivaud, o momento de maior desespero. Olhou para a floresta que o cercava, esmagado por uma angústia que até aí jamais sentira. A selva parecia escorrer sangue, amálgama de imensas copas com mais de duzentos metros de altura, um muro de folhas que escondia a luz pálida da atmosfera e se propagava em distâncias que quase não se podia conceber, quando olhado daquele ponto de vista baixo, do chão esponjoso. Formas de espécies não catalogadas, com flores bizarras e perigosos insectos do tamanho de um punho; mas sempre aquela mesma cor vermelha, fantasmagórica e cheia de sombras. Uma molécula semelhante à clorofila, mas púrpura, transformara o mato num peculiar cenário: dir-se-ia que a selva era exclusivamente feita de tecidos longos, hastes e troncos, (pareciam panos tingidos com o mais berrante do roxo ao rosa), raízes que vinham do topo das árvores (cinco vezes maiores do que as mais altas da Terra), e toda a arquitectura da natureza funcionava como uma gigantesca e profunda caverna, onde flutuava um cheiro a podre e um ruído de fundo, poderoso, que lembrava uma sinfonia ameaçadora, interpretada por instrumentos imaginários.
Segurando o corpo de Leduc, Rivaud escondeu-se nos arbustos, atento ao voo dos mortíferos insectos. Por instantes, o biólogo entrou em pânico; mas, com o tempo a passar, começou a acalmar-se. O fato térmico estava rasgado e deixara de o proteger contra a temperatura de 50 graus. Sentia febre. Mal conseguia respirar e perdera demasiada água. Desfalecia, poderia entrar em choque se não se acalmasse, e foi o intenso treino que lhe permitiu ultrapassar aquele momento. Sentou-se, agarrado ao cadáver do arqueólogo, e controlou a respiração, escondido dos velozes insectos sem nome, que zumbiam ainda. E enquanto esperou que passasse aquela tempestade, um pensamento assaltava-o: como pudera aquela expedição correr tão mal?

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Uma semana antes, um grupo de quatro exploradores tinha descido naquele ponto da selva densa do Planeta Golem. Levavam equipamento suficiente para enfrentarem qualquer perigo, incluindo fatos térmicos que lhes permitiam manter o corpo em temperatura segura e até escafandros. O local da descida não tinha sido escolhido ao acaso. Cinco anos antes, uma sonda automática fotografara o que parecia ser uma construção no meio da floresta sangrenta. Podia ser uma pirâmide, meio oculta na folhagem vermelha, ou uma cúpula de pedra ou ainda uma superfície espelhada que, de alguma forma, reflectia a luminosidade acima das copas do arvoredo. As imagens não permitiam identificar o objecto, mas era sem dúvida artificial. Em certas fotografias, quase parecia uma cara humanóide de grandes dimensões.
Golem ficava fora das rotas das viagens espaciais e tinha interesse remoto, pois não parecia haver recursos estratégicos naquele planeta do sistema de Sirius. Apenas a opressiva floresta, coberta por um efeito de estufa que tornava o clima demasiado quente para o ser humano. Mas a descoberta de traços que poderiam ser de uma civilização perdida mudara a estratégia da exploração. Nos anos seguintes, foram enviadas sete sondas automáticas, mas nenhuma delas conseguiu produzir qualquer dado significativo, excepto imagens de grande beleza da construção, que ganhava novos contornos, algo fantasmagórica e imprecisa. Um facto tornara-se evidente: Golem parecia inexpugnável.
Os voos com levitadores não permitiram reconhecer o local exacto da construção. Ou teria sido engolida pela selva e não estava visível. Ou brilhava apenas em certas ocasiões. Foram usadas técnicas variadas, mas o arvoredo era impenetrável, com três possíveis objectos dispostos em posições distantes um quilómetro umas das outras. Os restos de uma cidade de uma raça estranha? Ninguém sabia.
Por isso, foi enviada uma expedição de quatro homens armados, dispondo de aparelhos de comunicação, alimentos e água. Desceram de levitadores especiais por longas cordas e entraram na selva. Sabia-se a posição das pirâmides ou torres, ou das construções alienígenas; por isso, tinham descido a menos de um quilómetro do local estimado, montando acampamento. Quando encontrassem o objectivo, abririam uma clareira que permitisse poisar aparelhos com mais material e reforços humanos.

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O primeiro a morrer foi Delba, que comandava a expedição. Foi na madrugada do primeiro dia. Rivaud só podia especular sobre o que lhe acontecera. Delba vigiava o acampamento enquanto os outros dormiam. Quando acordaram, tinha desaparecido. Acabaram por encontrar o corpo a uma distância curta. A mão fechara-se sobre o que parecia ser uma flor esplendorosa. Mas uma análise revelou que as pétalas eram venenosas. Porque razão o comandante tocara, sem luvas, na flor?
O que nenhum dos membros do grupo compreendeu foi o motivo porque Delba saíra sozinho do acampamento, contra todas as regras. Teria sido atraído por algum ruído ou fora excesso de confiança do comandante? Vira alguma coisa ou alguém? Morto sem angústia, de face serena, Delba já não podia responder a essas inquietações.
Os três sobreviventes abandonaram o primeiro acampamento, depois de terem enterrado o corpo do comandante. À luz muito diáfana da manhã, a selva de Golem parecia incendiada, repleta de tons baços e formas horrendas, como se fosse carne viva pendurada num talho de criaturas gigantes.
"Um milhão de plantas desconhecidas para podermos baptizar com nomes novos", brincara Bergerac. Foram estas as únicas palavras que gastaram. Lembrando-se do companheiro, avançaram calados, pisando a cobertura esponjosa, (lianas, troncos e pântanos), rumo à construção alienígena.
Nesse segundo dia, perceberam que tinham perdido os aparelhos de comunicação e de orientação. Os primeiros deixaram logo de funcionar, consumidos por um musgo, ou algo vivo e quase microscópico que entrara no interior dos mecanismos e os incinerara; os aparelhos de orientação eram menos relevantes, pois não teriam de caminhar um espaço demasiado longo para chegarem ao objectivo, que devia estar logo ali, quatro troncos mais à frente, escondido pela cerrada vegetação rente ao solo.
Mas, nos dois dias seguintes, procuraram em vão a construção misteriosa, sempre sem avançarem mais do que um quilómetro em qualquer direcção. Andavam em frente, depois inflectiam para a direita e, de novo, para a direita, apenas 90 graus em cada viragem; após três voltas andavam de novo para trás, sempre num padrão semelhante, como se varressem uma quadrícula. Então, começaram a perceber que nunca encontravam os rastos deixados pela anterior passagem. Onde tinham cortado raízes e fendido vegetação com os grandes machetes, havia agora apenas a paisagem imaculada, monótona, como se novo tecido tivesse engolido os seus rastos.
O cansaço começara a tomar conta dos três exploradores. Sonhavam com a pirâmide, imaginavam que ali, naquela selva, estaria enterrada uma maravilhosa cidade de cúpulas douradas, mais bela do que qualquer outra construção no universo, e nesse refúgio poderiam descansar das suas fadigas.
Foram sendo tomados de alucinações. Bergerac enlouqueceu ao sexto dia. Começou a rir-se muito alto, histérico. Numa ocasião, sem aviso, embrenhou-se no mato espesso. Não o viram mais. Apenas o riso insensato, que parecia provir de várias direcções ao mesmo tempo. E, quando chegou a noite, trazendo o fumo rasteiro da decomposição dos tecidos, o cheiro ácido da putrefacção, Leduc e Rivaud ouviram de súbito um grito pavoroso, que irrompeu daquela paisagem de camadas decompostas, onde apenas a morte triunfava.
Já não procuravam nada, quando foram surpreendidos pelos insectos do tamanho de um punho. Limitavam-se a percorrer uma espécie de labirinto mental, sem rumo ou sentido, apenas marchando, já sem forças, um passo a seguir ao outro, como náufragos numa rotina.

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Rivaud pensou em ficar no local onde Leduc tombara. Permaneceria naquele exacto lugar até que chegasse a expedição de salvamento. Mas os murmúrios da selva de sangue prosseguiram na mesma entoação de um cântico fúnebre. E o corpo do amigo tornara-se desagradável, coberto por uma espuma, ou seria uma película de um líquido fétido, cuja podridão o contaminava também a ele, com o seu cheiro enjoativo, colado aos dedos, entranhando-se pela pele dentro.
E, quando o desespero já assentara no espírito cansado, emergiam na sua memória as imagens indefinidas daquilo que poderia ser uma construção em forma de cara humanóide, olhando o espaço, ou uma torre, ou uma pirâmide espelhada, a reflectir a vaga luminosidade pálida daquele planeta excessivo.
Acordado pela beleza das imagens, Rivaud ganhou energia para continuar a marcha. Deixou o corpo do arqueólogo escondido por folhas mortas e prosseguiu. Andou durante um tempo que lhe pareceu prolongar-se por muitas horas, cada passo um novo tormento, cada fibra do corpo a protestar com dores, pela desidratação, a febre, o cansaço.
Quando chegou a noite, escalou a um ramo de uma árvore e amarrou-se com a corda que lhe restava. Apesar do desconforto, conseguiu dormir. Sonhou com pirâmides e torres imaginárias, caras alienígenas e também, confusamente, com os nomes de fantasia que tinha escolhido para todas aquelas novas espécies de plantas, que ninguém conheceria jamais. E, quando despertou, ao raiar de uma luz que pairava como se fosse poeira, lembrava-se apenas de farrapos do sonho.
Depois, seguiu o caminho. De novo, as botas afundando-se na matéria esponjosa do solo, o cansaço a anunciar cada movimento, um vapor que parecia sair do seu corpo, a água restante, que se perdia para a humidade geral, como se as suas células fossem os únicos tecidos a secarem naquela armadilha.
E, de súbito, viu um movimento, alguns metros à frente. O que lhe pareceu um homem a andar entre a folhagem. E ouviu distintamente o ruído de machetes que cortavam a selva. O seu coração bateu mais forte, assaltado pela esperança de ser encontrado pela missão de salvamento. Mas logo essa alegria entrou em colapso, ao distinguir, naquela distância, duas figuras de homens, as cores do uniforme iguais às suas: eram ele e Leduc!
Sim, ele, Rivaud, a abrir caminho entre ramos soltos; e, atrás, Leduc, com uma expressão de angústia, o olhar desvairado e perdido. Antes de estar morto!. Uma cascata de emoções tomou conta das suas percepções, mas a visão fora breve, já os dois náufragos desapareciam numa neblina, sem lhe dar tempo para gritar.
Rivaud ainda andou à deriva durante muito tempo, uma eternidade. A floresta de sangue estava repleta de ecos. E, de súbito, foi inundado por uma onda irresistível de cansaço. Encostou-se a um tronco e ficou ali, à espera. Estava a morrer e sabia disso. Então, na derradeira hora, quando lhe restava a desistência, teve um relance das construções misteriosas. Estavam talvez à sua frente, a dez metros. Viu a superfície lisa de uma parede que brilhava, mas a imagem não era estável, parecia animada por uma ondulação de neblina que lhe mudava subtilmente os contornos. Era perfeita, pensou Rivaud, maravilhado com a descoberta. Igual ao sonho que sempre procurara, a quimera inexistente, a inatingível perfeição humana, o tesouro inalcançável, o cerne da alma. Uma miragem.
E, finalmente feliz, em paz consigo mesmo, Rivaud deixou-se flutuar na direcção da morte.

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4.11.06

Teleny

(* texto dedicado à Prof. Drª M.J.G.A. Boucherie, por criar consciências)


porque eu não sei quantos dias passaram até ontem, num tempo em que a boca falava pelos olhos, num tempo em que o cérebro contava até dez sozinho, sem a mão, sem paragens, sem erros de cálculo, sem desnortes em sequência
(três, cinco, dois, quatro, um)
- há uma parte da blusa branca que não se sujou com o molho da carne do jantar

(dois, quatro, seis)

os livros a mexer na prateleira, os livros a fazer demasiado barulho na prateleira, a prateleira a gritar com medo, a querer fugir
- a saia, o molho da carne, o prato virado ao contrário no colo

(cinco, um, zero)
eu já não sei contar com a cabeça porque já não sei existir
- a saia

(dez, três, sete, cinco, nove)
- gosto quando é nove

o metro, Lisboa, as iluminações de Natal presas aos postes na rua, eu a vê-las da janela do carro em condução, elas a dizerem que é Natal, outro ano a chegar, eu a explicar-lhes que se fez Natal demasiado cedo, que não estava preparada, que não estás mais cá para ver

(porque já não sei: um, quatro, cinco, sete, dois, nove outra vez)
- tu a falar de nós, a dizer que nós: a tua boca a cristalizar, a ganhar gelo nos cantos

Dois, sete, oito, zero, quatro, cinco.
Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez.
Zero.

3.11.06

acordeão

todo este silêncio ou
só um acordeão ao fundo da sala onde respirar é proíbido
mas
alguém tosse devagar e eu
solenemente enxuto e sozinho
baixo o olhar em volta do foco de luz e
respiro o meu corpo inteiro de volta a mim.

todo este silêncio e sim,
a mesma vontade de uma refeição limpa e outra vez
tu
as tuas mãos dóceis que me tocam
no escuro da sala de espectáculos
enquanto todos os outros à nossa volta
recuperam pedaços de si de dentro da boca.

todo este silêncio e mais
um acordeão que vem de fora do mundo nosso,
sol,
no meio de tanta chuva sinto-me aquecido pelos sons
e pelos abraços do fole que abre e fecha devagar
no ritmo de um amor que existe entre dois entes
um amor que do meio do silêncio se levanta a respirar.