1.2.06

Coteries

“Agente Guilherme Raposo?”
Reconheci a voz do director. Ele estava impaciente e nervoso:
“Preciso de si para uma investigação urgente. Li num blogue que está em curso uma conspiração de críticos literários”.
“Pode contar comigo, senhor director”.
“Desta vez, o perigo parece enorme. A República exige o melhor de cada um de nós. Quero um relatório às 14 e 54”.
O director desligou o telefone e eu engoli em seco. Poucas vezes enfrentara um problema maior. Uma conspiração a sério!
Nessa manhã, falei com todas as minhas fontes: Manuel Recados, o conhecido assessor de Imprensa; Coca-Bichinhos, o traficante de caramelos espanhóis; a Dona Rosa, a sensual agente que temos no Mercado da Ribeira. Recorri a todos e não consegui a menor informação.
Já em desespero, falei com o Manuel Encómio, um crítico musical caído em desgraça após lhe ser diagnosticada uma surdez congénita.
“O quê? Uma conspiração de críticos?”, gritou ele, quando lhe contei o caso.
Estávamos na estação do Cais do Sodré e os passageiros olhavam para o velho Encómio, que berrava como um pica a descobrir alguém sem bilhete.
Foi tirado a ferros, mas ele contou-me tudo (embora também tenha contado a todos os transeuntes, com aquele vozeirão). Redigi o relatório à pressa e, exactamente às 14 e 53 entrei no gabinete do director. O chefe estava à beira de um ataque de nervos.
“Descobriu os culpados, Raposo?”
“É um caso grave, senhor director. Parece que há grupos, chamados Coteries, cujos elementos se elogiam mutuamente”.
“Coquetes?”
“Não! Coteries”.
“Elogiam-se mutuamente?”
“Parece que sim”.
“É só isso? Elogios mútuos também os políticos e os jornalistas da República fazem! E nós próprios, aqui na agência! Ainda na semana passada o elogiei, Raposo, embora agora ache que fui demasiado generoso consigo. Você é um verdadeiro incompetente, por encontrar apenas o óbvio naquilo que é uma perigosa conspiração e um perigo para o regime”. Engoli em seco, ouvi as recriminações do meu chefe durante uma hora. Depois, ele disse:
“Quero uma investigação pormenorizada sobre esses tais croquetes”.
Dessa vez não fracassei. Fui à loja de um amigo meu e consegui a receita dos croquetes que a mulher dele faz e que têm fama nacional. As minhas amizades ainda servem para alguma coisa.

6 Comments:

Blogger Anne Marie said...

Brilhante!!! Parabéns! Muito bom!!!

9:53 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Gostei imenso. Tem muita graça e está muito bem escrito.

11:47 da manhã  
Blogger luisnaves said...

Obrigado pela leitura, a visita e o comentário

12:22 da tarde  
Blogger L. Rodrigues said...

Gostei francamente do informador surdo. Lembrou-me o melhor informador da história dos policiais. O Cego de Police Squad. Creio que se chamava Johnny the Snitch e sabia tudo, por um preço. Além disso, também comprava a sua própria informação.

2:37 da tarde  
Blogger luisnaves said...

Este estilo parece-me quase infinito, mas a dificuldade está em definir as personagens terciárias, apenas esboçadas, como o Johnny the snitch da série que referes ou a sensual dona rosa, que não consegui resolver e utilizar, embora me apetecesse

5:21 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

na mouche.., essa troca de galhardetes blogosféricos.. :))

Logo nas 1as linhas detecto se o texto é do Luís ou do João,

O Luís é mais social, o João tem sempre um toque de romantismo associado.

São estilos diferentes(ambos bons)

Bravo!

2:52 da tarde  

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