25.5.07

Se me deitar de costas vou ser mais feliz.

Uma autora espera Diogo Infante à porta do Maria Matos. Quer saber da sua boca porque não lhe foi atribuído o prémio de teatro. Diogo Infante assusta-se e foge. Corre e fecha-lhe a porta. Ela continuará ali.








Se me deitar de costas no chão vou ser mais feliz.

18.5.07

Territórios de Caça (XVI)














16. No dossier havia várias fotografias, cujo sentido não compreendi. Soldados, uma foto de Budapeste, talvez nos anos 50. Dois homens em skis, no meio de uma floresta. Numa das imagens, estavam diversos oficiais, com números; mais em cima, escrito a lápis: "Hargitai", mas era impossível identificar qual dos oficiais era Hargitai, sem mais nenhuma informação sobre essa pessoa. Havia fragmentos de textos, mas só copiei um deles para o meu caderno:
"Não imagino porque razão me interessei por aquele prisioneiro. Talvez ele se parecesse comigo, numa circunstância que podia ter sido a minha. Hargitai estava preso há dois anos. Era um homem orgulhoso, calado, sem família e que não parecia ter muitos amigos na comunidade dos detidos. O que fiz, a princípio pretendia ser uma experiência: fazer constar que fulano dera algumas informações, separá-lo da massa dos outros presos, para proteger o nosso verdadeiro informador nas celas. A ideia era iluminar aquela personagem inocente, que tinha todas as condições para se destacar da massa anónima. E, ao transformá-lo num farol que atraía as atenções gerais, preservava-se o verdadeiro culpado.
Foi o que fiz, até com ajuda do informador. Chamei o alvo para consultas médicas, marquei outros encontros onde estavam diferentes oficiais do campo; conversávamos, ficávamos no calor do gabinete; tudo tinha um aspecto inocente; depois, fingi um tratamento que não parecia necessário; fiz constar isso mesmo, alimentando as suspeitas; aproveitei o clima de paranóia e a maldade natural do ser humano.
Ao fim de algumas semanas, Hargitai já parecia um peixe fora do cardume. Começou a andar verdadeiramente sozinho, talvez ainda iludido com a sua independência. Nessa altura, compreendi que o meu prisioneiro era odiado, não pelas suspeitas que começavam a incidir sobre ele, mas apenas porque não cumprimentava as pessoas que desprezava e por se considerar mais digno do que os outros. Estava autenticamente convencido da superioridade dos seus valores, o que é algo de insuportável para muita gente. Por exemplo, do alto do seu moralismo, Hargitai exigia um tratamento igual para todos os prisioneiros, contestando abertamente o sistema hierárquico que existia no campo (os próprios prisioneiros tinham recriado uma nova sociedade de classes).
E um dia, o nosso informador aproveitou uma daquelas discussões de cela, sobre a autoridade, para lançar a farpa que tínhamos previamente combinado: Hargitai defendera qualquer coisa inofensiva sobre o uso e a limpeza das casas de banho, quando o nosso informador disse: ‘Falas como um verdadeiro comunista’. Na frase de aparência inocente, havia uma insinuação venenosa.
Nunca se imagina que as relações de poder e a luta pelo território, os comportamentos de medo e de agressão, se tornem ainda mais brutais no ambiente confinado e de recursos escassos de uma prisão política. Para o carcereiro, o inimigo é a solidariedade entre os presos e, enfim, tudo aquilo a que nos habituámos a chamar de humano, embora o verdadeiro humano seja o acto de isolar a vítima, e depois, de a caçar e matar para nosso deleite.
Ao fim de algumas semanas, após ter perdido a solidariedade dos outros, Hargitai estava lentamente a perder peso. Foi nessa altura que tive a ideia de lhe dar comida extra, uma delicatessen a que a sua fome não poderia resistir, por muito que a combatesse o orgulho. E, claro, bem manipulado pelo nosso informador, alguém descobriu o petisco assim tão habilmente plantado na fragilidade da minha vítima.
A partir desse momento, correu entre os presos a notícia confirmada de que Hargitai era o informador, embora fosse apenas um iludido, um pobre idealista apanhado nos poderosos acasos do destino. Em 56 até se portara com coragem, mas fizemos correr que era tudo mentira, que já nessa altura fora delator sob tortura.
Eu fizera-lhe um cerco lento, uma caça de paciência, à espera que aquele homem aceitasse a fatalidade que se lhe impunha.
Apenas subestimei a humanidade dos outros. Cada um dos prisioneiros virou-se contra Hargitai que, desprezado por todos, foi mergulhando num abismo de honra amarfanhada. E cada prisioneiro com quem se cruzava segredava-lhe que seria melhor se ele acabasse de vez com a sua vida sem valor. E foi isso mesmo que Hargitai fez: numa noite de lua cheia, saiu da camarata e correu, feito um doido, para o ponto mais protegido do campo, enquanto gritava ‘nunca traí, nunca traí’. Derrubou-o uma rajada de metralhadora".

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16.5.07

v - happy end

sorria
e
leia-me
ao
contrário.

iv - sustenido

e podiam bater à porta a noite inteira
devagar
de
vagar
vagaroso

iii - desejo

quem?

ii- alucinação

e vinha o teu corpo como um comboio
a silvar agudamente ao meu ouvido.

i - recado

não quero ser uma bola anti-stress a rebolar
entre os teus dedos onde as unhas, acabadas
de arranjar, parecem prontas a rasgar-me
em pedaços pequenos para serem largados
pelo chão da sala imensa da tua casa.

Territórios de Caça (XV)




15. O texto estava escrito à mão, com a mesma letra do anterior. Estava acompanhado da fotografia de um homem novo. Tinha um título, "memória", com a palavra "conto" à frente (Fárkas dissera que aquilo não era literatura, mas tinha esta palavra escrita, numa letra bem desenhada):
«Um saco está cheio, por exemplo, com areia. De repente, por um qualquer passe de magia, essa areia vaporiza-se, desaparece de forma instantânea. O saco perde o seu interior e, subitamente imaterial, deixa-se cair por efeito da gravidade, flácido e lento. A seda pode escorrer da mesma maneira, parecendo uma torrente de coisa nenhuma.
Foi assim que tombou o corpo, como se tivesse ficado subitamente esvaziado, ou como se a vida fosse um tecido de seda, em queda no universo. Nem fez nenhum som. Isso surpreendeu-me muito, pois esperava que o colapso daquela existência, a sua passagem da matéria para o nada, fizesse algum tipo de barulho dramático.
Enfim, estas duas impressões (a de um corpo a tombar como se fosse um tecido de seda) e a ausência de um ruído apropriado, resumem tudo o que me lembro do meu primeiro assassinato.
Claro que me recordo também do olhar absolutamente pérfido de Horváth, que estava bêbado e já não media os seus gestos. Tirou a pistola, passou-a para a minha mão e disse: ‘Não consigo acertar no estafermo, parece que se mexe muito. Mata-o tu, é uma ordem’.
Não tremi, nem nada. Pelo contrário, fiquei imperturbado. Mas, ao pegar na pistola, senti nas minhas mãos o que sentira quase vinte anos antes. Lembro-me, foi ainda antes da guerra, num verão qualquer, talvez em 38...
...Devia ter uns seis anos e peguei nas pernas de trás de um coelho da minha avó; fiz balançar o coelho, como se fosse um chicote e lancei a cabeça do bicho contra a esquina de um pilar de pedra que segurava a casa...
...Horváth falhara o primeiro tiro. Eu devia estar ali apenas para assistir ao fuzilamento e confirmar o óbito, certificar todos os procedimentos. Tentei convencê-lo a não matar o prisioneiro, mas senti a determinação maldosa no seu olhar, que não admitia contradições. O primeiro tiro que ele disparou acertou no alvo, mas o ferimento não era mortal. O uniforme de Horváth estava manchado de sangue, havia uma poça de sangue no chão, a bala entrara no pescoço (não percebia como podia ter falhado tanto); o condenado estrebuchava, numa agonia horrível. Horváth estava a entrar num nevoeiro de gestos perdidos, sem saber o que devia fazer a seguir, bebera demasiado e não conseguia dar o tiro de misericórdia...
...O coelho estava vivo e havia força nos seus músculos, uma vitalidade que pressentia com as minhas mãos de criança. Mas quando lhe parti o pescoço, foi como se uma mola se quebrasse num brinquedo e tudo ficou flácido, uma gelatina sem ânimo. O coelho deixou de abanar...
...Por isso, peguei na pistola e encurtei o sofrimento do homem. Horváth riu-se: ‘Perdeste a virgindade’, disse o bruto. Observei com nitidez que ele tinha as calças do uniforme cheias de sangue e as botas altas manchadas. O uniforme do comandante estava uma vergonha. Apeteceu-me insultá-lo e dar murros naquele focinho de porco. Podia ter recusado a pistola: dizer-lhe que era médico, que não era um facínora. Mas preferi ficar calado, pensei no sofrimento do prisioneiro e fiz-lhe o favor de o poupar a minutos, talvez horas, de uma morte lenta. Depois, pensei, com surpresa infinita, que as mãos não me tinham tremido. E lembrei-me...
...Tinha seis anos e senti uma alegria imensa ao matar o coelho. A cabeça pendia no ar, um pouco grotesca, pareceu-me. E comecei a rir de forma tão histérica, que quando me descobriram, aos gritos, tiveram de me dar estalos, para que me calasse...
...Horváth fizera de propósito, para me humilhar, porque pensara que eu não mataria o homem. Mas havia uma razão ainda mais forte para estar irritado com aquela besta: o facto, tão simples e transparente, de ter adorado premir o gatilho. A pistola estalara: o barulho foi um pouco mais seco do que eu estava à espera e o coice um pouco mais forte; sobretudo, fascinou-me ver o crânio a explodir ao impacto da bala; e o que me surpreendeu foi simplesmente o corpo a tombar para o lado, como se fosse um véu de seda a cair num chão encerado, e a ausência de ruído depois do tiro. E fui inundado por uma sensação de poder e de prazer, a mistura exacta dos dois.
Nessa noite, Horváth continuou a beber, mas foi apenas o excesso que o impediu de matar outros prisioneiros. Havia um medo indizível a pulsar na noite, nas camaratas onde vidas precárias se agitavam, como se fossem coelhos paralisados. Eu não consegui beber uma gota. Estava demasiado lúcido. Procurei o ficheiro onde constava o nome do homem que eu matara e li todos os pormenores da sua vida, que era bastante banal. Achei estranho que todos aqueles factos sem nada de especial, compilados com tanto cuidado pela polícia, convergissem para um único ponto da história onde me encontrava eu próprio, de pistola em punho, à espera. Eu, imóvel, aguardando a chegada de uma vida vulgar que avançava para aquele ponto, exclusivamente para aquele ponto e não para um outro qualquer; pois essa vida, pensei, servira apenas para preencher a necessidade da existência de um encontro, no espaço e no tempo, que nenhum de nós previra.
Sei agora que os corpos celestes não se movem em órbitas previsíveis, mas num incerto turbilhão feito de atracções e repulsas, numa sopa de caos, até ao triunfante momento, o solitário segundo, inevitável desde o início dos tempos, em que cruzam o seu percurso com aquilo, tudo ou nada, que esteve uma eternidade à espera».

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15.5.07

Territórios de Caça (XIV)


14. Demorara algum tempo a ganhar coragem para ler o dossier. Quando me decidi a fazê-lo, peguei ao acaso num dos documentos. Estava escrito à mão, em tinta permanente, sem emendas:
"O mal pode vestir sempre a pele inócua da coexistência. Aliás, o mal tem múltiplas formas, tantas quanto as estratégias individuais para sobreviver. Mas o compromisso, que nos parece sempre o mal menor, é afinal uma pena eterna. Eu sei, pois sou um especialista. Tenho esta habilidade de compreender depressa cada ser humano, aquilo que omite e esconde, o que ama ou esquece. Tenho esta maldição de compreender em demasia, de ser lúcido num mundo enlouquecido. Por isso, lembro-me muito bem de um episódio onde compreendi para além da banalidade do momento.
Certo dia, durante uma viagem na província, encontrei um camponês de ar matreiro. Ele devia ser meio analfabeto e nem desconfiou de mim, porque eu vestia roupas de cidade, sim, mas à maneira de um estudante pobre ou de um operário em visita à terra. Estava frio, mas já não havia gelo. A camioneta serpenteava estrada fora, numa manhã de chuva, com protestos das mudanças perras e do motor fatigado. Perguntei ao camponês para onde ia e ele olhou-me, primeiro com desconfiança; depois lá se tranquilizou, por qualquer razão, e decidiu-se a contar a sua história:
‘Vou ao tribunal’ admitiu. ‘Tenho de me apresentar todas as semanas’.
‘Por causa das perturbações?’ perguntei, usando o eufemismo popular para a contra-revolução que abalara o país, cinco meses antes.
Ele confirmou, com um gesto da cabeça.
‘E qual foi a sua sentença?’ perguntei.
‘Fui condenado à morte’.
Ri-me às gargalhadas, o que o surpreendeu. Depois, o camponês riu-se também.
‘Então o tio foi condenado à morte e anda aqui em liberdade, no autocarro da carreira?’
‘Pois é, filho! Eles não nos podem matar a todos, não é?’, respondeu ele, num tom sonso.
Disfarcei, ri-me também da resposta, mas perdera o ar superior. Pensei no medo e na dúvida, depois desviei a conversa.
O autocarro acelerou numa série de rectas e vi que havia pessoas em ambos os lados da estrada: não sei porque estavam ali, à chuva e ao frio, no meio do campo, sem nenhuma aldeia à vista; pareciam esperar alguma coisa ou era como se apenas não tivessem nada para fazer; a maioria estava de um dos lados, em filas soturnas, as mãos a segurarem os casacos; homens e mulheres; depois, havia um, isolado, um rapaz novo, por qualquer motivo na margem oposta do asfalto, com um aspecto ainda mais infeliz e miserável, numa solidão demorada.
Nunca entendi a essência daquela visão, mas ela fez-me compreender algo com longo alcance para mim: soube desde então que viveria o resto da minha vida no lado errado da estrada".

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14.5.07

Territórios de Caça (XIII)


13. Tal como prometera, eu e Csilla visitámos nessa noite o meu vizinho István Fárkas, depois de jantarmos qualquer coisa improvisada. Levámos bolos que fui comprar de propósito. Deviam ser nove horas quando chegámos. Era bastante tarde, pelo que não pretendia ficar muito tempo.
De início, estranhei o nosso comportamento meio embaraçoso, cheio de cerimónias: nem aquela parecia a casa de Fárkas, nem eu me portava como costumo fazer em visitas sociais; falei com cuidado, para não melindrar o anfitrião, evitando entrar em temas de zonas cinzentas. No fundo, compreendi que mal conhecia aquelas duas pessoas. Enfim, também estranhei a atitude de Csilla, que em vez de estar em casa de alguém que era amigo da família desde a infância dela, mais se comportava como a minha namoradinha, segurando-me a mão como se fosse uma adolescente; e não sei se com aquele gesto de melodrama de bairro queria impressionar o velho ou impressionar-me apenas a mim.
Conversámos um pouco, sobre banalidades, até que nos sentámos à mesa: havia uma luz forte no tecto, que iluminava directamente o tampo; o resto do apartamento estava silencioso e escurecido; o gato dormia no cobertor amarrotado que cobria o sofá. A princípio, houve um silêncio solene, a ponto de podermos perceber a tranquilidade de todo o prédio. No fundo, sabíamos que ia acontecer qualquer coisa e que seria revelado o motivo daquele convite.
Fárkas serviu palinka e obrigou-me a beber duas porções. E encheu-me o copo de novo. Csilla também bebera por duas vezes e agora começava a rir-se muito, por tudo e por nada. O riso dela era irritante, notei, embora a aguardente tivesse sobre mim o efeito adicional de aumentar a excitação que sentia, ao imaginar o corpo despido da minha namorada.
Foi nessa altura que Fárkas retirou dois maços de papéis de uma gaveta. Um deles era o dossier que eu próprio guardara em minha casa. Mas o meu vizinho segurava outro pacote e disse, numa voz baixa:
"Esta é a minha memória. São coisas que fui escrevendo ao longo da vida. Fragmentos, mais do que tudo. Cartas para um leitor futuro. Gostava que os lesses, pois contam uma história, e tu és um caçador de histórias".
Não sei porquê, a única preocupação que me ocorreu foi o mistério de ver novos documentos e de nada saber sobre eles. Onde tinham ficado, enquanto Fárkas estivera no hospital? Estranhamente, foi isto que lhe perguntei. Ele observou-me, espantado, mas respondeu:
"Ficaram em casa da mãe da Csilla, naturalmente! Estavam lá, bem guardados!". Olhou para a rapariga e, com um olhar terno acrescentou: "A minha menina é que os trouxe, anteontem".
O sorriso beato da ‘minha menina’ revelou-me o grau de cumplicidade que existia entre os dois. Confundido, sem saber o que pensar daquilo tudo, peguei no novo maço de folhas que Fárkas me estendera e que prometi ler.
Bebera a minha terceira palinka, mas o meu vizinho encheu-me de novo o copo, e engoli aquela nova porção, não pelo prazer que me dava beber a aguardente, mas pela suave tontura que começava a sentir:
"István, diga-me, acabe com estes mistérios: você esteve preso durante o antigo regime..."
O velho fez uma pausa. Reflectiu um pouco naquela minha pergunta, feita em tom de afirmação:
"Conheci bem o regime e as suas prisões. É por isso que preciso que leias tudo o que escrevi. Isto é a verdade, não é literatura". Com a ponta do dedo dava ênfase à frase, batendo na superfície do dossier.
Aceitei, finalmente. Abri a pasta, vi que não havia poucos documentos, embora parecessem mais, pois estavam misturados, dispersos. Havia folhas soltas, manuscritas com uma letra miudinha; papéis de cartão, com desenhos; fotografias, pequenos poemas.
"Não terás de ler muito! Depressa entenderás!" suplicou Fárkas.
"Porquê eu?" perguntei.
"Digo-te amanhã!", prometeu o velho.
Era tarde e estava tudo dito. Saímos da casa dele. Regressámos ao meu apartamento.
No silêncio escuro da minha casa, segurei Csilla, queria beijá-la, mas ela esquivou-se. "Estou com a coisinha", disse ela. Foi a expressão que usou, a ‘coisinha’.
Csilla acendeu a luz da minha secretária de trabalho. Colocou sobre ela o dossier de Fárkas e ordenou:
"Lê! Eu vou-me deitar!"
Obedeci. Sentia ainda uma vaga tontura, mas bastou-me ler um dos papéis para perder essa sensação de irrealidade, para me esquecer do embalo agradável e protector da ligeira embriaguez que me provocara a palinka.

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12.5.07

Territórios de Caça (XII)


12. Fárkas e o padre János despertaram-me das minhas deambulações. Tinham-se aproximado sem eu notar e estavam a meu lado. O meu vizinho ria-se, disse que eu era um sonhador.
"Eu e o bispo Benedek estávamos a discutir um ponto de teologia, sobre a importância de Judas", disse Fárkas.
"Já expliquei que ainda não sou bispo...", interrompeu o padre, que parecia ter recuperado alguma cor.
"A redenção, a salvação, a ressurreição. Tudo isso é muito importante para o cristianismo", sentenciou Fárkas, que falava como um académico. "Mas sem a traição de Judas, nada disto seria possível". Com um gesto teatral, mostrava toda a magnífica nave da igreja, que nos rodeava como se fosse uma floresta de pedra, com fortes troncos a segurarem ao chão frio as imensas copas.
"Isso é uma afirmação controversa, nos limites da heresia", rebateu o padre János.
"Se Judas não trair Cristo, ele não será julgado e, portanto, não haverá crucifixão. Sem esta, não há cruz, nem ressurreição. Nem símbolos nem essência".
"A traição de Judas é fruto da falta de fé, de uma tentação diabólica", disse o religioso, mas sem convicção, como se não pretendesse vencer aquele debate.
"Não é o que vem na Bíblia, interpretas", rebateu Fárkas.
O padre fez um último esforço para argumentar:
"Quando a fé se esgota, quando a tentação se torna irresistível, Judas está perdido. É essa a moral da história".
"Talvez, János! Mas quando os discípulos duvidam do seu mestre, fazem-no por falta de crença, por pobreza de espírito. E são perdoados, após tornar-se visível a sua pouca fé. Mas Judas é diferente! Ele é um instrumento de Cristo! Ele é dispensável e morre sem perdão, sem redenção possível, nunca sendo claro que tenha perdido a fé! Até se pode conceber o inverso".
O padre ainda não se rendera:
"Os seus ressentimentos eram demasiado poderosos. O orgulho foi a sua perdição. E vendeu-se por dinheiro. Jamais poderia salvar-se".
"Judas era demasiado culto para se vender verdadeiramente. O décimo segundo apóstolo é diferente dos restantes: ele é um caçador, enquanto os outros são pescadores de almas. E é demasiado intelectual para trair por dinheiro. A sua traição é instrumental e, acima de tudo, necessária! Ou não teria cometido imediatamente suicídio. Pois nele não há remorsos, apenas a consciência de que a humanidade nunca saberá do seu sacrifício supremo, o de servir o seu mestre, traindo-o. Se eu fosse cínico, diria que toda esta fantástica construção se baseia numa denúncia! Sim, de certa forma, esta é também a igreja de um delator, Judas Iscariotes!"
O padre János fez um gesto de repugnância pelo que tínhamos ouvido, mas permaneceu calado, como se esperasse que nos fôssemos embora.
Fárkas também se cansara do debate e iniciou os cumprimentos finais. Quando é que serás bispo, perguntou. János Benedek encolheu os ombros. Respondeu que não tinha pressa.
"Pelo contrário! Devias ter a máxima urgência!" exclamou Fárkas, com um dedo espetado.
Dito isto, o meu vizinho avançou pela nave e eu fiquei para trás. Mas o padre János segurou-me pela manga da camisa e, numa voz muito baixa, disse:
"A malo liberate, fili mi!"
Não compreendi o que dissera em latim, mas agradeci a bênção, um pouco surpreendido pela solicitude do padre János com quem, afinal, trocara duas ou três palavras. Cumprimentei-o, dei-lhe os parabéns pela nomeação. E segui Fárkas.
Era quase meio-dia e andámos um pouco em volta da catedral, à espera que soassem os sinos. À hora exacta, ouvimos os sinos. De seguida, caminhámos para casa.
"Um bom homem, este János Benedek. Embora tímido", afirmou Fárkas.
Foi a única coisa que disse, até chegarmos ao nosso prédio. Subimos as escadas e, quando nos separámos, no meu patamar, o meu vizinho segurou-me no braço (um pouco como fizera o padre) e pediu-me que o visitasse nessa noite, depois do jantar. E que levasse Csilla comigo:
"Temos muito que falar!"
Não me apetecia, mas não encontrei uma boa desculpa para me esquivar ao convite. Só algumas horas depois fiquei a pensar nas palavras dele, no facto de ele ter pedido para levar Csilla comigo, como se soubesse, ou antes, por saber, o que nos acontecera na noite anterior.

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10.5.07

catarata

olho todos os meus sapatos alinhados junto à parede,
no corredor. que horas são, esta manhã, não sei dizer.
saído do banho, sinto o meu corpo lavado das coisas da noite:
sonhos maus, algum suor, algum frio, uns quantos espirros.

penso no quão triste pode ser a literatura quando é assim,
repetida, mastigada, programada. uso palavras que me arrepiam,
que me dizem pouco. estou deslocado no mesmo lugar onde sempre estive.
é esta a minha casa e escrever-te isto é como se te convidasse a entrar.

podes ficar aí, junto à porta. eu desço as escadas mecanicamente,
calado. o dia recomeça sempre da mesma forma, sabemos isso.


versão em prosa em: http://milnove79.blogspot.com/2007/05/catarata.html

Territórios de Caça (XI)


11. O padre János era um homem alto e enxuto, com menos de 60 anos, e que me pareceu de uma palidez cadavérica. Ele foi pouco efusivo nos cumprimentos. Fárkas elogiou a sua nomeação como bispo, mas o religioso não parecia entusiasmado, com a expressão sofrida de quem tinha um mal no estômago. Quando lhe apertei a mão, senti a pele dele suada, os músculos flácidos. Foi um contacto quase repugnante e apressei-me a retirar a minha mão.
"O padre János vai agora ouvir-me em confissão", disse Fárkas, para minha grande surpresa, pois até aí nunca imaginara que o meu vizinho fosse católico. Ele pediu-me que esperasse um pouco, que seria coisa rápida. "Quase não tenho pecados", explicou, com uma largo sorriso feliz. "O importante é o poder libertador da confissão. Aliás, devias experimentar um dia, Lajos".
"Sou ateu", repliquei.
Fárkas fez um gesto de quem lamentava o fim do mundo e reparei que, estranhamente, o padre olhava para um ponto indefinido, completamente alheio à nossa conversa, perdido algures na nave do templo, como se rezasse ou pensasse em algo distante.
Quando fiquei sozinho, sentado nos largos bancos corridos, em frente ao altar, à cruz, aos vitrais que mostravam a glória de santos, em vez da paz regressou à minha consciência o tropel dos últimos acontecimentos e o fogo em que ardia uma espécie de paixão, certamente uma tentação, feita de ansiedade, da antecipação de tocar aquele corpo que me devorava, da brancura da pele de veludo, do riso de contentamento, da forma que se moldava à minha mão e que tremia sob a minha pele...
...Tentei soletrar o seu nome e o que via à minha frente, numa enorme pintura clássica, o corpo flagelado de um Cristo alto e esguio, quase nu, como eu próprio estivera, sobre um lençol, na brancura daquela mortalha, enquanto Csilla me tocava ao de leve, com ternura, apenas com a ponta dos dedos; pois que se me cravasse com as unhas não teria sido menor o meu júbilo sofrido e a dor sublime; na figura de braços estendidos e olhar virado para o vazio do céu, chagas abertas, no dorso, no ventre, nas coxas; e eu sabia que também tinha o corpo assim em feridas, marcas produzidas por carícias, em golpes que jamais seriam visíveis...
...E, sobretudo, meditei na minha solidão. Ao pensar em Sara, que esquecera durante um dia inteiro, percebia de súbito que nada mais me podia amarrar a esse passado de silêncios e rotinas. O que um dia me excitara em Sara era o contraste da minha pele mais escura com a brancura extrema da dela, apenas isso, e os cabelos ruivos que caíam em anéis suaves sobre os ombros, e os olhos azuis (que abria desmedidamente) sempre que eu a abraçava. Tinha seios pequenos, corpo magro, e quase temia magoá-la com o peso dos meus músculos; e o que me deixava doido, em Csilla, era exactamente o inverso, o que nunca tivera com Sara: ela gozava com o sexo, derretia-se à minha frente, numa festa demorada. E, de súbito, ao observar as imagens da igreja, que se misturavam estranhamente com as minhas memórias, percebi os olhares lânguidos do êxtase, a transfiguração, a sensação de leveza que fazia flutuar os santos numa beatitude contemplativa. E as duas formas de prazer, o pecaminoso e o celeste, juntavam-se num só, que era electrizante e sôfrego, insuficiente, demasiado pouco...

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8.5.07

Territórios de Caça (X)


10. Estava inebriado pelo excesso e parecia-me que não havia mais nada na minha vida. A sensação era de vazio, apesar de ter irrompido aquela estrela pelo meu espaço dentro. O que é excessivo na existência torna-nos insaciáveis. Agora, Csilla era tudo o que me importava. Ela passara a noite na minha casa e saíra de manhã; prometera voltar nessa mesma tarde e eu sentia que não tinha mais coragem para esperar o que parecia ser a própria eternidade. Quando se despedira de mim, ela parecera uma gata a ronronar, a enrolar-se à minha volta, a desfazer-se em promessas que me deixavam louco. Na solidão da casa, fiquei atordoado de desejo, a imaginar mil e um pormenores sobre a sua própria vida, que queria dominar depressa, impaciente com essa insegura sensação de não a conhecer de todo e o perigo pressentido (que um diabinho atrás da orelha me murmurava) de não gostar do que viria um dia a conhecer.
Eram já dez horas, quando decidi ir passear pela cidade. As pessoas estavam nos seus escritórios, ou nos seus empregos. Por isso, caminhei por ruas quase vazias, cuja quietude apenas era perturbada pela passagem do ocasional automóvel, alguns reformados, crianças de escola. Enquanto caminhava, na aparente serenidade, as minhas ideias atropelavam-se, cavalgando umas em cima das outras.
Quando regressei à rua Gogol, Fárkas estava a sair pelo portão do prédio. Trazia um chapéu à maneira antiga, parecia bem vestido. Cumprimentou-me com alegria, de braços abertos, afirmou que eu o tinha salvo por duas vezes. Um verdadeiro herói, disse ele, engrossando esta última palavra, que pronunciava com evidente prazer. Depois, pediu-me para o acompanhar e não me esquivei, pois, no fundo, precisava da companhia de alguém, para poder reflectir sobre a desordem que ia no meu espírito.
Apesar do sol brilhar, a manhã estava fresca. Enquanto caminhávamos, Fárkas explicou que iria visitar um padre seu amigo:
"Ficarás a conhecê-lo também. Chama-se János Benedek e, na semana passada, foi escolhido para ser o bispo da nossa diocese. Vou cumprimentá-lo pela nomeação".
Esperei que o meu vizinho fizesse alguma pergunta sobre Csilla, mas ele permaneceu silencioso e sorridente. Não parecia ter qualquer curiosidade em relação ao que sucedera depois de fechar a porta do seu apartamento.
Ainda estávamos longe da catedral e perguntei a Fárkas sobre o seu irritado visitante da véspera:
"O Petrudján foi meu doente", disse ele, para minha surpresa. "Um megalómano".
"Mas o István é médico?"
Ele confirmou. Contou-me que tinha sido psiquiatra noutra cidade, agora estava reformado, e que tratara numerosos casos, sobretudo de alcoólicos e doentes de nervos. Usou mesmo a palavra alemã:
"Salvaste-me a vida pela segunda vez", prosseguiu, "o Petrudján é um estouvado e pode tornar-se violento em certas ocasiões".
"É impressionante como ele se parece com o Charles Aznavour", disse eu, aliviado com a explicação de Fárkas.
"Que reste-t-il de nos amours, que reste-t-il de ces beaux jours"*, cantou Fárkas, numa voz de barítono.
"Essa é do Charles Trenet, parece-me".
Rimos os dois. E aquela proximidade tornou-me ainda mais curioso em relação ao meu vizinho e não resisti a fazer-lhe uma pergunta que poderia desvendar novos fragmentos do seu passado:
"Quem era a mulher da fotografia, a Vera?"
Ele parou. Olhou para mim. Percebi, aliviado, que não o melindrara. Pelo contrário, Fárkas ganhara uma expressão tranquila e sonhadora:
"Viste a fotografia dela no dossier que te pedi para guardares?" perguntou.
Confessei que vira a imagem e o que estava escrito no verso.
"A Vera era uma colega de escola. Andámos na mesma faculdade. Ela saiu do país em 56. Sabes, Lajos, na minha geração tudo se explica com 56: os que escolheram a liberdade, os que optaram pelo compromisso, os que nunca se adaptaram, os que nunca se arrependeram. Ela escolheu a liberdade. Sei que a Vera acabou o curso de medicina no Canadá. Faleceu em 76, num estúpido acidente. E o que está escrito no verso da fotografia era ‘In Vino Veritas’, a conhecida frase latina, que atribui ao vinho a propriedade de desatar as línguas".
Tínhamos chegado à catedral católica. Um edifício imponente, que domina o centro da nossa cidade.
Fárkas tirou o chapéu e acompanhei-o no interior do templo. A luz solar incidia nos vitrais, realçando a sua coloração etérea. Cheirava a um misto de pedra antiga e humidade entranhada, mas a atmosfera escura e espessa tinha uma espécie de suavidade. O altar faustoso, um friso de velas acesas, cujo cheiro se dissipava pela vastidão da nave. E, ao fundo, um homem vestido de negro, tão austero como as estátuas religiosas: um padre, em cuja direcção Fárkas avançou.
* nota do tradutor: em francês no original húngaro

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7.5.07

Territórios de Caça (IX)


9. "Espera, não te vás embora", pediu a desconhecida. Parecia uma criança caprichosa, um pouco zangada com a minha indelicadeza.
Tive noção de que não estava a ser agradável. Esperei por ela. Estendi-lhe a mão, para a cumprimentar. Apresentei-me. E ela também:
"Sou Csilla Feher", explicou a rapariga. (Imaginei logo campos de estrelas, luz intensa) *.
Observei-a melhor: era relativamente baixa; devia ter pouco mais de vinte anos; um corpo perfeito; talvez um dia viesse a ser algo gorda, mas agora tinha a cintura fina, proporções encantadoras; o cabelo era liso e curto, de cor indefinida, entre louro e castanho. Tinha também olhos acastanhados, mas num tom demasiado claro, o que fazia com que parecessem quase verdes, quando vistos de certo ângulo. A rapariga tinha uma expressão suave e era bastante bonita quando olhava para trás, mostrando só o perfil da cara. Vista de frente, não era tão agradável; e quando falava (parecia nervosa e falava depressa) notavam-se os dentes de fumadora, amarelados, e a voz engrossada pelo tabaco.
"Acompanho-te pelas escadas", disse ela, como se estivesse subitamente com pressa.
Descemos um andar. Mas, para minha surpresa, em vez de se despedir e continuar a descer, Csilla prosseguiu na minha companhia, até à porta do meu apartamento. Olhou para mim, com a expressão de um empregado à espera de gorjeta:
"És sobrinha do István?", perguntei-lhe.
Riu-se. O cabelo era curto, mas voou para trás e vi como a expressão dela mudara:
"Não, que ideia! Trato-o por tio porque o conheço desde criança. Era muito amigo dos meus pais!"
Eu estava a abrir a porta, meio confundido com o momento embaraçoso que senti aproximar-se. Ela não partia e não podia deixá-la ali fora. Por outro lado, não a conhecia suficientemente para a convidar a entrar; seria um convite rude, no mínimo. Mas Csilla desfez o impasse:
"Com esta excitação toda, era bem capaz de tomar um chá".
Por isso, entrámos. Preparei rapidamente um chá verde e foi então que tudo começou a acontecer fora do meu controlo. Csilla sentara-se na mesa da cozinha, no mesmo banco onde se sentara Fárkas, dias antes. Sorria para mim, muito inocente. Exclamou que estava calor na cozinha e tirou o casaco. Sob o casaco, vestia uma blusa decotada e o botão de cima estava descuidadamente desprendido, pelo que se lhe via parte do peito. E sorriu para mim, ao perceber que eu observava, de cima para baixo (estava ainda de pé), a gloriosa forma dos seios dela.
"O que era aquilo tudo? Quem é aquele tipo execrável?" perguntei, gaguejando.
"O tio explicou", disse ela, a poisar negligentemente a mala no chão, debruçando-se ainda mais, deixando ver mais alguns centímetros do peito, que descaía, gracioso e redondo.
"O tal Petrudján, quem é?", insisti.
"Tem uma loja de antiguidades e empresta dinheiro. É um agiota".
"E tu? Como entras nesta história?"
Csilla riu-se:
"Vim ver o tio István! Estava preocupada com ele. E deparei com a discussão."
Depois explicou que trabalhava numa loja e, enquanto me contava a sua vida, observei-a melhor: era uma daquelas mulheres que sem serem belíssimas têm um poder qualquer impreciso que enlouquece os homens. Não é algo da esfera do sensual, mas da própria sexualidade, em cada gesto concentrado, em cada pedaço do corpo, na entoação do que dizem, mais do que no discurso. De súbito, senti-me excitado e febril com aquela presença que me perturbava. E, para meu espanto, sabia estar intimidado, mas com medo de mim próprio: quando levantei as chávenas, para as lavar, Csilla seguiu-me e pegou nelas, queria ser ela a lavá-las. De súbito, sem transição que eu pudesse compreender, ficámos lado a lado e senti distintamente o calor do corpo dela, que me queimava e endoidecia. Então, toquei-a no braço, à espera que Csilla se afastasse do meu toque levíssimo. Isso não aconteceu. Não apenas aceitou a carícia, mas parecia fazer pressão no sentido contrário, como se pedisse que a minha mão a envolvesse ainda mais. E ela também me tocou, mas no peito:
"És um homem muito bonito, sabes?", disse Csilla, num sussurro, a mentir sem subtileza.
Depois, pôs-se em bicos de pés e beijou-me na boca, muito na superfície dos lábios. E eu deixei de pensar, ou antes, só pensei em largar a energia que parecia ter refreado toda a minha vida.
* nota do tradutor: feher significa branco e csilla é semelhante à palavra húngara estrela, daí a associação de ideias de kormányos. O autor usa, em algumas passagens mais à frente na história, várias associações deste género, e optámos sempre pela tradução "estrela".

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6.5.07

Territórios de Caça (VIII)


8. A luz cinzenta entrava pelas duas largas janelas da minha sala de trabalho e quarto de dormir. Tentava reflectir, sentado na minha mesa, em frente à máquina de escrever, (pensava em Sara, no que acontecera nos últimos dias, na questão do dinheiro e no conto que iam publicar), mas algo interferia na ordem dos meus pensamentos. Alguns barulhos são como inofensivas cócegas, mas podem crescer, até se tornarem incómodos. Não posso dizer quando comecei a aperceber-me, no silêncio habitual da casa, do ruído de fundo produzido por uma discussão entre várias pessoas. A algazarra deve ter durado algum tempo e, às tantas, parecia-me um estardalhaço intolerável.
Decidi parar o meu trabalho e procurar a fonte da perturbação. O som era mais forte na cozinha, ou seja, vinha das traseiras do prédio. Abri a porta de casa e procurei os desordeiros. Entretanto, ouvia-se outra voz, de uma criança ou de uma mulher.
Só então compreendi o que se passava. No andar de cima, estavam três pessoas a gritar: um deles era Fárkas, que curiosamente parecia o mais tranquilo; a seu lado, uma mulher jovem (o que notei imediatamente foram os jeans apertados, que lhe desenhavam formas redondas e esbeltas); a terceira figura era um homem magro, de cabelo curto, vestido de gabardina cor de areia.
"Não pode ser, estás proibido!", insistia o homem pequeno, enquanto a rapariga, de braços entrelaçados, num gesto de desafio, lhe gritava: "Você é que não pode ser!".
E o da gabardina atacava: "Nem penses que levas a tua avante!".
Subi ao andar de cima, para tentar parar aquele tumulto patético.
E, então, aconteceu algo de estranho: quando cheguei ao patamar de cima, entrava na varanda colectiva, aproximava-me daquele estranho grupo, o homem baixo cresceu para Fárkas e agarrou-o pelos colarinhos da camisa; estava tão irritado, que parecia capaz de agredir o meu vizinho, apesar da idade deste e de ele estar em convalescença. A atitude era inaceitável, até porque a varanda corria a grande altura e o corrimão não era assim tão forte. Poderia ter havido um acidente!
Por isso, corri para ajudar o velho; a rapariga lançara um grito histérico e batia com a mão aberta na cabeça do agressor: "Tira as manápulas, meu idiota!", gritava ela, mas num guincho muito agudo, que mostrava extremo nervosismo.
A cena foi rápida. Agarrei o homem por trás e obriguei-o a largar Fárkas. Ao ver-me, ele pareceu surpreendido: "Você?", soprou, a olhar para mim, os olhos injectados de ódio, com um misto de raiva e recuperação de certa compostura, talvez por compreender finalmente que se tinha excedido. Mas dissera aquilo como se soubesse quem eu era.
O incidente acabou naquele momento. Olhei melhor para o desconhecido: era baixo, parecia-se estranhamente com Charles Aznavour: era um autêntico sósia do cantor francês. A rapariga segurava o velho: "O bruto não o magoou, tio, pois não?", perguntava ela, aflita.
"Depois falamos melhor sobre isto", disse Charles Aznavour, numa evidente ameaça, que parecia dirigir a Fárkas, mas talvez também a mim.
"Haverá outras oportunidades, meu caro Petrudján, a vida é longa.", respondeu Fárkas, muito digno, apesar da camisa amarrotada.
E o tal Petrudján deslizou para a saída, com a gabardina a esvoaçar.
"O que queria este tipo, István?" perguntei.
Houve uma pequena, ligeiríssima, hesitação na resposta:
"O Petrudján emprestou-me dinheiro e, agora, quer cobrar. A palavra de um homem já não conta nada, nos dias que correm! Combinámos que o dia do pagamento era só no final do mês. É nesse dia que eu pago e nem um dia antes! Ainda há princípios!"
Soara a improvisação brilhante, mas a explicação da dívida não jogava com as frases que eu ouvira.
Fárkas sorria, apesar de tudo. Estava recomposto, mas com ar preocupado e cansado.
"Estou velho para estas discussões", disse ele.
Dito isto, despediu-se de nós:
"Vocês são jovens! Eu estou velho! Falamos depois", explicou.
Fárkas entrou em casa e fechou a porta, devagar. E eu fiquei no patamar, na companhia daquela mulher desconhecida. A tarde estava cinzenta e melancólica; um vento fresco trouxera um derradeiro protesto de início de primavera. Percebi que não tinha casaco e voltei para casa, com uma vaga saudação à rapariga.

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4.5.07

os ossos da cara

Porque as árvores da rua são mulheres abandonadas pelo companheiro, mulheres sem filhos, mulheres de coxas liquídas que por dor enterram as suas caras na terra: não querem ver o dia de rostos amargos. Sobra-lhes de fora o tronco, corpo seco e áspero de uma pele que já não usa cremes á noite, que já não bebe água durante o dia, que já não dorme no quente

(o resto vegetal da barriga, a gordura amarela da barriga encarquilhada encastanhou)




as árvores sem ninguém saber, as suas saias verdes de folhos abrem as pernas ao sol, esperam a chegada da música. As árvores são mulheres nuas na rua que fazem amor com os pássaros, com o vento: o seu sexo rapado vê-se do céu
- eu ajoelhada no chão, eu a bater com a testa no cimento vermelho da parede

(a cabeça pesada a gritar)
bater com a força do corpo e das ideias dentro: na parede, castigar o meu corpo pela imperfeição dos teus dedos dos pés




as árvores na rua são mulheres abandonadas com a cabeça dentro da terra
- eu ficava na varanda a dançar o Inverno até alguém vir: sentia o som da chuva cair-me dentro dos ouvidos e ficava tão desajustadamente feliz, tão profundamente surda
(as orelhas frias do molhado, o cabelo gelado)




os pés costurados ao chão, os joelhos e os braços a dançarem o movimento
- ouvi-te falar com megafone lá em baixo: a tua voz era redonda e eu vivia num 8º andar com gatos a fingir que chamavas por mim




os pés bordados à tijoleira faziam sangue espalhar-se pelo chão: tentava levantar as pernas para correr, queria chegar-te rápido e o sangue, quando eu queria sair, o sangue em pequenos lagos na varanda, os pés agrafados ao soalho, a pele a rasgar dos lados e o sangue a ir-se, morno, morto





morno, morto





Um dia gostava de voltar a ter 15 anos para pôr mousse de chocolate no cabelo. Sairia à rua a perguntar por ti.

Territórios de Caça (VII)


7. Esta manhã, fui ao mercado. Restavam-me sete mil forint, o que só dava para fazer umas compras simples.
O mercado fica numa praça próxima da rua Gogol, num cruzamento de duas grandes avenidas, onde convergem trabalhadores e transportes públicos. Como já adivinharam, a nossa cidade não é demasiado grande: trespassada por um rio contido em margens altas e cimentadas (houve uma catastrófica cheia em meados do século XIX e fizeram obras hidráulicas, poderosos diques e mudanças de curso do rio a montante). A cidade tem três pontes, uma universidade, os habituais bairros de classe média, que se estendem por quilómetros de casas baixas, e os bairros cinzentos de painel, para os pobres (prédios todos iguais, pré-fabricados, de má construção).No centro, herança da monarquia, o grande jardim, uma pomposa sede de câmara municipal e os luxuosos correios. Há ainda escolas, igrejas para três religiões, cinemas, restaurantes à beira rio, uma casa de ópera com filarmónica, a biblioteca, vários hospitais e parques de certa dimensão, onde é agradável passear. Ao todo, umas trezentas mil almas. Eu vivo na zona mais antiga, no centro, nos tais prédios da monarquia, de paredes grossas.
Mas regressemos ao mercado. Saí cedo. Levava um pequeno saco de pano e seguia meio distraído, enfeitiçado pelo bulício e a confusão, a simples circulação de tanta gente, os cheiros e ruídos, as cores garridas do sol oblíquo a iluminar as bancas cheias de produtos.
Ainda não me decidira a comprar e avançava no meio da multidão quando, de súbito, deparei com Sara. Quase chocámos. O encontro foi de tal forma imprevisto, que não podíamos fugir um ao outro.
Ela sorriu, foi amável. Cumprimentámo-nos com um beijo na face e quis saber como eu estava. Eu respondi que andava bem e devolvi a pergunta. As pessoas continuavam a circular à nossa volta e havia muito barulho, o que nos obrigava a falar alto, para nos ouvirmos na balbúrdia. Ela tinha o cabelo ruivo mais comprido e emagrecera. O cabelo brilhava intensamente à luz acobreada do sol. Os olhos azuis, geralmente límpidos e aquáticos, estavam congestionados (chorara nessa manhã). Sara trazia um saco com compras, que me mostrou, apontando para uma velhota, mais ao fundo: olha, Lajos, aquela mulher tem os melhores legumes, disse ela. Tens de ir lá.
Mas falara com tal melancolia, com um sorriso tão triste e falso! Pensei nesse mesmo instante que sempre fora assim, amargurada e silenciosa. Quando nos conhecemos, em Budapeste, eu tinha sonhos de ser escritor e ela ficou talvez fascinada por essas minhas ambições; e um escritor tanto pode escrever na capital como numa pequena cidade de província; por isso, segui-a para a cidade onde moravam os pais dela e onde tinha um emprego de professora. Tal como eu, estava no seu segundo casamento; saíra de uma relação turbulenta, que a deixara talvez mais prudente com a vida e menos iludida. A família não ajudou: os pais não gostavam de mim, diziam-lhe nas minhas costas que vivia com um inútil. Dali, nada sairá de bom, sentenciava o pai, que trabalhara numa grande fábrica até à reforma antecipada (nem a tentaram modernizar: despediram toda a gente e arrasaram tudo; as ruínas da fábrica ainda estão no mesmo sítio; ocupam um espaço enorme, que parece ter sido bombardeado). E o pior eram as conversas políticas: o pai de Sara tinha a nostalgia do antigo regime e não se conformava com o novo. Irritava-se quando discutia comigo. Agora temos liberdade, dizes tu? Que bela liberdade é esta de já não servir para nada aos sessenta anos!
Eu e a Sara nunca casámos e ela não quis ter filhos. Como vamos alimentá-los, dar-lhes um futuro, pagar-lhes os estudos, perguntava ela. Se ao menos ganhasses mais, se arranjasses um emprego de informático...
Ao ver de novo aquele corpo magro que tanto amara e o cabelo ondulado, vermelho e rebelde, lembrei-me de como Sara queria que eu deixasse de sonhar. Vi o meu saco vazio, o dela cheio. Sugeri: tens aí muito peso. Ajudo-te a levar o saco até à paragem do trólei.
Nesse momento, ainda pensei que talvez fosse possível recomeçarmos tudo. Levaria o saco até casa dela!
Temos de falar sobre a nossa vida, disse eu. Ela virou-se para mim, olhou-me muito intensamente, numa tristeza infinita. Está tudo acabado, Lajos, respondeu ela. Primeiro, hesitei, algo desapontado; depois, concordei: sim, tens razão, magoaste-me muito. O que disse era a pura verdade, explicou ela. Uma verdade, talvez, que nunca se confessa a nenhum homem sem ferir o seu orgulho. E Sara (aqueles olhos, aqueles olhos!) deu a estocada final do duelo: só pensas no teu orgulho, o que sempre tiveste em excesso.
Sara subiu para o trólei, eu disse-lhe adeus, ela respondeu com um aceno pensativo e alheado.
E, então, reparei que havia várias pessoas que me olhavam: uma idosa gorda; um rocker com penteado de índio; um cigano baixinho; um homem de bigodes. Todos eles me observavam, a atenção cravada nos meus gestos, como se quisessem desvendar os meus pensamentos.
Corri para casa, enervado. E, ao chegar, havia uma carta. A Vida e Literatura comprara-me um conto: incluía um cheque de 30 mil forints como pagamento. Agora, já podia pagar a renda! E queriam mais contos e novelas, se os tivesse, mas pediam que os enviasse por e-mail, em vez de dactilografados à máquina e pelo correio.

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2.5.07

Territórios de Caça (VI)

6. Sentado nesta cadeira, ouço os ruídos da rua Gogol. Vivo neste apartamento há um mês. Devia pagar a renda amanhã, mas não me resta dinheiro. A casa é pequena e tem um pé-direito enorme, pois resulta de décadas de sucessivas divisões. Na fachada, ainda existe uma pequena placa enferrujada, com a data de construção: 1906. Esse foi um ano de grande renovação da nossa cidade.
O prédio ainda é imponente, apesar da arquitectura banal. Tem quatro pisos e janelas viradas para sul. Entra-se por um portão largo, que dá para um pátio onde cabia uma caleche elegante. Depois, virada para o outro lado, está a escadaria, sóbria, mas sólida. E, enfim, os apartamentos, que deviam ser enormes quando foram construídos. Moro no terceiro andar, num apartamento renovado a partir de metade de uma cozinha um quarto de criada e parte de uma sala, com duas janelas grandes. (Fárkas mora no andar de cima, numa casa ainda mais pequena).
A rua Gogol deve ser das mais agradáveis da nossa cidade: tem fileiras de faias pujantes, muitas delas plantadas no início do século. O bairro, fisicamente, não sofreu durante a guerra. Durante o regime comunista, as melhores casas foram nacionalizadas, para alojar trabalhadores. No fim do regime, foram vendidos, a bons preços. Os prédios estão preservados e só alguns se encontram em mau estado, sem obras há décadas.
Enfim, aqui não houve bombardeamentos de guerra, mas ainda se podem ver as cicatrizes do século. Este era o gueto judeu e o que se observa é a ausência dos antigos habitantes. Como se alguém tivesse cortado um membro a um corpo envelhecido.
No início do século, a zona era de classe média. Os judeus que viviam neste bairro foram um dia agrupados e ceifados. Coisa súbita, como um ataque cardíaco.
Quando o prédio foi construído, no tempo da monarquia, os habitantes destas casas estavam bem instalados na vida. Em segurança, como escreveu Stefan Zweig, no seu Mundo de Ontem. Depois, veio a loucura. Olho para estas paredes e quase percebo a tragédia dos que foram forçados a partir, arrastados para a morte. Estas paredes estão repletas de sussurros de fantasmas. Risos, choro.
Mas divago. O apartamento onde vivo não é meu. O aluguer foi um favor de um amigo, a quem não poderei pagar. Ele costuma alugar a estudantes, mas abriu uma excepção. Eu não tinha melhor lugar para onde ir, depois da minha mulher me mandar embora. A Sara diz que quer pensar sobre o nosso futuro, que não estamos separados, nem nada, mas não acredito que a nossa vida volte a ser o que era. E pensar que vim para esta cidade por causa dela!
Neste apartamento entra-se pela cozinha, o que resulta das sucessivas divisões sofridas ao longo do tempo. Há poucos móveis.
Sara foi firme em relação ao apartamento onde vivemos durante seis anos: é meu, insistiu; disse-o várias vezes. Nunca resisti à inevitabilidade do destino, mas ela repetia a ideia, como se tivesse má consciência. Pediu-me para procurar um sítio onde pudesse dormir e que a deixasse sozinha, com a sua infelicidade. Quando se sentiu desesperada, afirmou algo que me magoou muito (e que ainda não me sinto com coragem para contar).
Levei comigo duas malas e um saco de plástico com dez livros. Fiquei com o carro, um volkswagen em segunda mão. Lajos, tens de me dar espaço para pensar no futuro, justificou ela. E, depois, disse aquilo. Ainda estou ofendido. Não a vejo há um mês. Nem fui à nossa casa. Aliás, já não é minha.
Quando nos encontrarmos, sei que ela vai falar em separação definitiva e tenciono surpreendê-la, não resistindo à ideia. Não será preciso divórcio, porque nunca casámos.
Eu era um peso na vida de Sara. Secretamente, ela desprezava-me, ou pior, lamentava-me: Lajos, tens de ganhar mais dinheiro, o que era a maneira suave dela dizer que sou um inútil, com aquele trabalho irrelevante de escrever num jornal de província e tentar alinhavar uns contos que não consigo vender a nenhuma revista literária. Uma vez respondi-lhe. Foi uma espécie de desabafo: se ao menos ainda estivesse em Budapeste, se ao menos não tivesse vindo contigo para esta cidade adormecida, disse eu. Ela ficou muito magoada. No fundo, achas que sou uma provinciana, respondeu-me, zangada. E pensei que não era nada assim, que eu dissera aquilo por saber que ela me despreza, à maneira insegura das mulheres. Tem desdém pelo meu insucesso, porque vivemos numa nova sociedade, onde ter dinheiro é tudo o que importa. És um desadaptado, Lajos, disse a Sara, numa das suas afirmações mais lógicas. Tens razão, não levo nada a sério, respondi, a ofendê-la de novo sem querer, pois julgou que eu me referia aos seus problemas.
Um dia, esperei pelo final das aulas (Sara ensina química num liceu da cidade). Ao fim de algum tempo, ela saiu mas, no derradeiro instante, escondi-me numa sombra. Escondi-me para não estragar a felicidade que lhe vi no rosto. Sim, percebi que seria embaraçoso para ela eu aparecer-lhe assim à frente, como alguém da família que rejeitou.

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1.5.07

Territórios de Caça (V)


5. Fárkas regressou ontem do hospital. Veio imediatamente a minha casa, para levar o dossier. Ouvi alguém a bater na janela da porta do apartamento onde vivo (é, na realidade, a porta da cozinha) e fiquei surpreendido por ver o velho ali à minha frente, com ar bastante saudável. Explicou que tinha recebido alta e que estava recuperado. Convidei-o a entrar e a tomar chá (que aceitou).
Ficámos algum tempo sentados na mesa da cozinha, que dá para duas pessoas se sentarem, enquanto bebíamos o chá que preparei. Conversámos bastante.
Ele contou-me tudo sobre os dez dias passados no hospital, que tinha sido incómodo a princípio, mas o tratamento acabara por ser eficaz, óptimo, acrescentou; "privilégios dos pensionistas", disse; e as enfermeiras eram simpáticas. Riu-se deste último comentário, um riso brejeiro que não condizia com a sua figura espartana. Mas, enfim, reflecti, enquanto o ouvia: que sabia eu dele?
Naquela conversa, onde eu apenas disse trivialidades, comecei a observá-lo com maior pormenor. Parecia esquivar-se, por vezes, a dar a sua verdadeira opinião sobre as coisas (sim, era isso, fizera três comentários sobre os funcionários do hospital e nenhum deles coincidia, como se o discurso servisse para lançar interrogações, numa busca lateral do ponto nuclear que pretendia descrever). Mas talvez estas minhas impressões fossem tolas. Como podia eu tirar tais conclusões de meia dúzia de palavras ditas numa conversa banal, enquanto se tomava chá?
Apesar de tudo, falámos de outras coisas: ele mostrou curiosidade em relação à imagem de um calendário que estava pendurado na parede:
"Não sei se já reparaste, Lajos, que este calendário é de Outubro. Espero que não estejas assim tão fora do teu tempo".
"Não é meu. Só vivo aqui há um mês".
"Eu sei, eu sei, estava a brincar..."
"Deve ser dos estudantes que viveram neste apartamento, no ano passado".
Ainda gaguejei a explicação, mas ficara muito surpreendido com aquele "eu sei". Além disso, tratara-me por Lajos e por tu. Não pelo meu nome de família, Kormányos, ou por você, como teria sido normal. Nem pensei em familiaridades, esclarecer o "eu sei" ou responder da mesma forma e tratá-lo por István, por exemplo; continuei a usar a formulação respeitosa. Fárkas tinha idade para ser meu pai! Mas também não fiz alusão à forma de tratamento que ele utilizara. Limitei-me a procurar o dossier, que lhe entreguei.
"Espero que o tenhas visto bem por dentro", disse ele, de repente, a mostrar-me o dossier.
Devo ter ficado de todas as cores. Fui forçado a balbuciar uma desculpa, que alguns dos objectos tinham caído e, de facto, tinha aberto a pasta para colocar lá dentro o que se espalhara no chão.
Ele sorriu muito, quase uma gargalhada: "Fizeste bem".
A partir deste ponto, não tive coragem para lhe pedir uma explicação sobre aquilo que vira no interior do dossier. Só podia esperar que ele explicasse. Fárkas deu-me um aperto de mão. Mudara de expressão:
"Obrigado por me teres guardado os documentos", disse, finalmente, com ar solene. "Vamos perdendo a memória e estes papéis são referências que deixamos no caminho, para não nos perdermos".
Queria perguntar-lhe se sofrera muito, ao ser prisioneiro, mas fiquei silencioso, a tentar perceber na sua cara o que ele estava a pensar. E não conseguia ler nada.
"Há ali mensagens...", disse eu.
"Sinais, pistas. Estou a ver que és um bom caçador". Fárkas nem esperou que eu negasse, prosseguiu logo: "Para um bom caçador, o importante não é o momento de capturar a presa, mas a circunstância do cerco, o conhecimento do território onde a vítima se move, a aproximação e a armadilha". Mudou outra vez de expressão, parecia de repente muito feliz: "Ah! Mas dou por mim a filosofar em demasia. O que verdadeiramente interessa é que ainda temos muita vida à nossa frente!"
"Mas, István, eu nunca cacei na vida!" A minha própria frase surpreendeu-me. Tratara-o pelo primeiro nome.
"Isto é metafórico! És um caçador de histórias!"
Depois de fazer esta afirmação, Fárkas largou uma risada, despediu-se e saiu.
Nessa noite, não me saíam da cabeça aqueles farrapos de destinos esquecidos que pressentira no dossier. Tive uma terrível insónia. Pensei em territórios de caça, circunstâncias de vida, em qual das três mulheres seria Vera, a que suscitara a palavra veritas. E, depois de adormecer, sonhei com lobos*.

*(nota do tradutor: esta referência é de difícil tradução, pois Fárkas, em húngaro, significa Lobo. Kormányos usa o plural, mas para um leitor do texto original a ligação entre o nome e sonho é imediatamente óbvia)

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