Um terramoto um dilúvio um desastre de avião.
Sabe bem estar contigo quando dormes, quando
falas,
nascem bebés entre as palavras.
Depois crescem,
como a esperança que me davas.
Pequenos textos, pequenos prazeres
Um terramoto um dilúvio um desastre de avião.
Sabe bem estar contigo quando dormes, quando
falas,
nascem bebés entre as palavras.
Depois crescem,
como a esperança que me davas.
Nesse dia, o senhor Jorge saiu de detrás do balcão, abriu a lata de Cergal em andamento e vociferou-me:
- Cá para mim, esse Amadeu precisava era de uma mulher como deve de ser. Assim com’á minha!
- Qual Amadeu, senhor Jorge?
Fiz-lhe a pergunta sem levantar os olhos do Su Doku quádruplo que me levara, enraivecido, a pontapear a Shakira debaixo da mesa, aos saltos com o seu lacinho rosa barbie no pescocinho de poodle.
- O Amadeu Mozart! Ora quem!?
E com isto, deu por terminado o assunto e virou-me as costas, em sincronia com um arroto olímpico em posição de mariposa. Desisti de entender. Não filosofo em leitarias. Nisso, sou muito diferente do Fernando Pessoa, benza-me Deus.
Enganosa é a noite das portas anunciadas,
das portas fáceis abertas
para o mais fundo lugar.
Todos transpomos o limiar da esperança.
Só alguns regressam,
retomam a primitiva dança.
Hoje não há silêncio, sombra ou medo
nem sussurros de amantes em segredo.
Hoje regressas e recordo só a estrada,
vestindo de vermelho a pele dourada.
Podem cair em tom de aviso flores lilazes.
Mas o jardim, as raparigas, os rapazes,
acordam na dobra desse dia
a esperança indestrutível da alegria.
Não sei, em verdade, como despes
a memória respirando quando as noites...
Mas sei de nós, os dois surpreendidos
por haver tanto ainda para dar.
Apenas nós entre a Alma e os sentidos.
E o Amor antes da hora de acabar.
Ele foi esperá-la ao terminal do autocarro, vindo de longe. Não a via há mais de dois meses e tinham ficado sem resposta todas as sofridas cartas que enviara. Sentou-se num banco de jardim no Campo Grande olhando os barquinhos, a fazer tempo fumando um cigarro e a pensar no que diria, como o diria, quando o diria...
Assim que ela chegou, esqueceu todos os critérios de oportunidade e a frase saiu-lhe de rompante: «Apaixonei-me. Não soube viver assim, com a distância e o silêncio». Ela olhou para ele e sorriu. Ficou perplexo ao senti-la tão genuinamente divertida. «Claro que sim», respondeu ela. E depois: «Anda comigo». Com a delicadeza de quem orienta um sonâmbulo, levou-o pela mão até à primeira pensão que encontraram e as horas que se seguiram nunca ele as conseguiu contar. Ao sairem finalmente para a rua, muito abraçados, ele ia a pensar outra vez o que diria, e como o diria. O quando, esse, podia esperar.
Descobri o lugar que te pertence,
essa pequena dobra, ampulheta de luz.
Não tem ainda um som
e talvez não viva para saber dizê-lo.
Mas, em cada manhã,
desperta-me a vontade de merecê-lo.
Etiquetas: conto
Deitei fora um casaco velho, esqueci um número
de telefone, quase consegui deixar de fumar.
Tudo por amor.
Antes de ti era o Verbo
e o Verbo fez-se fome,
tantas letras quantas gralhas no teu nome.
Faróis de sal desviam para longe
o perigoso aroma das amêndoas.
Eis-te perto desse amor que chove.
Com os pés na areia fria,
na pele as mãos tão quentes
e a boca no formigueiro de outros dentes.
Dias como os de agora, a passos lentos. A pureza do beijo liquefeita no gesto treinado que segue a língua, o sexo hirto pela expectativa sabedora do desejo e, afinal, tudo isso menos.
Menos do que um beijo, dado e recebido com pudor semi-clandestino por detrás da paragem do autocarro. Esse beijo nunca imitado, ressentido ou classificado. As minhas mãos paradas, hoje sábias. O meu sexo inerte. O corpo desnecessário perante o espírito que se abria e empurrava, rua abaixo correndo, aquele que fui eu.
Não te percas entre os clamores do dia.
Apenas um sopro te separa da última viagem,
aquela que acordada farás lembrando
as vezes que esperaste em lugar de partir.
Todos o somos, na vertigem que seduz:
Pirilampos diluídos no início da luz.
Etiquetas: conto