Desencanto
Poisa o copo no tampo da mesa. Desvia o olhar de mim, tentando fixar objectos estranhos, no exterior: “Quando é que eu senti que já não o amava?” Helena faz uma pausa para ganhar fôlego, “o momento foi banal, Joana!”
Faço que sim com a cabeça, como se soubesse.
“Foi por causa de alguma coisa fútil que ele disse, com ar de grande importância. E percebi, num único instante, o que nunca tinha visto nele, o que sempre me escondera ou que eu não quisera ver”. Helena suspende o relato. Coloca os óculos escuros, embora a luz do restaurante não a possa perturbar. Só depois prossegue: “O David não me foi infiel num aspecto físico, mas traiu a imagem idealizada que eu tinha dele”.
Helena divaga. Quero contestar o que diz: a maneira como vemos os outros não depende só dos outros. Mas não a interrompo.
“O David apropriou-se de uma banalidade que eu tinha dito. Nessa manhã, comentei uma notícia do jornal e, horas depois, fomos visitar uns amigos e ele quis brilhar na conversa e vomitou o mesmo exacto comentário que eu fizera. Percebi então que ele não se apropriara apenas do meu comentário, mas de mim; eu era a sua propriedade, o seu terreno fértil...”
O empregado interrompe-a, ao trazer o último bolo. Helena parece um bocado ridícula com os óculos. Pede a conta. A confidência terminou. Estamos no exterior do café. Passeamos pelo jardim. Não me contenho e digo:
“Na realidade, o amor é uma coisa que nos foge lentamente. Pensas que foi nesse momento, mas tinha sido antes”. Helena parece estranha, mas continuo. “Imagina que pomos as mãos em concha e deitamos água. Ela vai escapando entre os dedos. Às tantas, parece que irrompe tudo de uma vez, mas o processo começou logo no início”.
Passeamos em silêncio. Acompanho-a até à estação. Quando se despede de mim, com um beijo rápido, Helena está furiosa comigo. Só mais tarde percebo que transformei a sua confortável ilusão de que a culpa era de David num banal desencanto mútuo, que é uma degradação igual à doença ou ao envelhecimento.
Faço que sim com a cabeça, como se soubesse.
“Foi por causa de alguma coisa fútil que ele disse, com ar de grande importância. E percebi, num único instante, o que nunca tinha visto nele, o que sempre me escondera ou que eu não quisera ver”. Helena suspende o relato. Coloca os óculos escuros, embora a luz do restaurante não a possa perturbar. Só depois prossegue: “O David não me foi infiel num aspecto físico, mas traiu a imagem idealizada que eu tinha dele”.
Helena divaga. Quero contestar o que diz: a maneira como vemos os outros não depende só dos outros. Mas não a interrompo.
“O David apropriou-se de uma banalidade que eu tinha dito. Nessa manhã, comentei uma notícia do jornal e, horas depois, fomos visitar uns amigos e ele quis brilhar na conversa e vomitou o mesmo exacto comentário que eu fizera. Percebi então que ele não se apropriara apenas do meu comentário, mas de mim; eu era a sua propriedade, o seu terreno fértil...”
O empregado interrompe-a, ao trazer o último bolo. Helena parece um bocado ridícula com os óculos. Pede a conta. A confidência terminou. Estamos no exterior do café. Passeamos pelo jardim. Não me contenho e digo:
“Na realidade, o amor é uma coisa que nos foge lentamente. Pensas que foi nesse momento, mas tinha sido antes”. Helena parece estranha, mas continuo. “Imagina que pomos as mãos em concha e deitamos água. Ela vai escapando entre os dedos. Às tantas, parece que irrompe tudo de uma vez, mas o processo começou logo no início”.
Passeamos em silêncio. Acompanho-a até à estação. Quando se despede de mim, com um beijo rápido, Helena está furiosa comigo. Só mais tarde percebo que transformei a sua confortável ilusão de que a culpa era de David num banal desencanto mútuo, que é uma degradação igual à doença ou ao envelhecimento.
Obrigado pelo comentário. Este conto, para mim, foi particularmente difícil de escrever e andei algum tempo à volta da ideia central até chegar a esta forma
Gostei!!
obrigado pela visita e pelo comentário