2.1.06

A vida continua


Nestes assuntos, não vale a pena mentir. Quando a vi, lembrou-me caramelos espanhóis, aqueles meio rançosos que comprávamos em Badajoz juntamente com sucedâneos de chocolate e que demoravam horas a derreterem-se na boca, mais entretidos a esburacar-nos os dentes.

Não sei se me entendem. Estou a tentar dizer-vos que ela tinha um aspecto pegajoso, duro e atraente, tudo ao mesmo tempo. E rasca também. Não era uma rapariga que se apresentasse aos pais, a não ser que morassem no Bairro das Marianas. Em resumo, fazia o meu tipo. Até porque sou órfão e não preciso de dar satisfações sobre as minhas companhias.

É importante lembrar-vos (não que alguma vez o tenham sabido) que estava um pouco tocado. Mas, com um bocado de sorte, ela também. Pelo menos encostava-se ao balcão como alguém que precisa de um apoio sólido, para contrabalançar o apoio líquido.

Ora outra coisa que não vos disse foi que o barman é meu amigo, embora tenha um fígado com outra opinião. Chama-se Joe e, tirando o nome e o facto de ser americano, é um bom rapaz que sabe dosear um Rusty Nail, numa altura em que outros que andam para aí o julgam nome de verniz para as unhas. É que não há como um Rusty Nail para ganhar pedalada e perder as poucas inibições que nos restam. Mesmo no meu caso que, como devem ter percebido, não tenho muitas.

Convencer o Joe a entrar na jogada foi fácil. Como quem faz conversa, que é o trabalho de qualquer barman, ele confidenciou-lhe que eu era um caçador de focas perseguido pelo Greenpeace, refugiado em Lisboa e sustentado por japoneses que disfarçavam o pagamento sob a forma de lições de golfe na Penha Longa.

Pode parecer-vos inverosímel, mas os olhos dela brilharam quando se voltou para mim e fez o sinal de chamada com a unha comprida, só menos comprida do que as pernas. Depois disso, foi o amor. Instantâneo como o bom café e igualmente doce. Tornámo-nos tão inseparáveis como uns Bonnie & Clyde de colarinho branco, especialistas em dar ao dinheiro a cor do mais refinado açúcar. Lisboa era nossa e os off-shores da Madeira também. Beijos e juras eternas trocadas por telemóvel, um núcleo duro suavizado pela paixão.


Hoje, sempre que Joe e eu nos encontramos para lembrar os velhos tempos à beira da piscina da minha casa em Birre, falamos dessa primeira noite. Tentamos imaginar como ela está e se alguma amnistia poderá vir a caminho para abreviar-lhe a prisão. No fundo, não temos muitas esperanças e a vida continua. Essa é que é essa.

9 Comments:

Blogger lebredoarrozal said...

bonito texto, e não sei porquê, lembrou-me o truman capote.

GOSTO TANTO DE RUSTY NAILS:D

5:42 da tarde  
Blogger João Villalobos said...

Cara Lebre,
Muito obrigado pela comparação ;)
O Truman é um dos meus preferidos entre os cultores do New Journalism (hoje já não tão new :), a par com o Hunther S. Thompson e o Tom Wolfe.

5:51 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

A mim, lembra-me que tenho que levar a vacina do tétano... Já te desejei Bom Ano, João Vasco? Nunca é demais.

Este não é um Blogue político mas deixo aqui uma parte dos votos para o ano Novo de William Blum (killinghope.org):

May your abuses at the hands of authority be only cruel, degrading and inhuman, nothing that Mr. Cheney would call torture.
May your country never be "liberated" by the United States.
May your labor movement not be supported by the National Endowment for Democracy, nor your elections.
May the depleted uranium, cluster bombs, white phosphorous, and napalm which fall upon your land be as harmless or non-existent as the Pentagon says they are.
May you re-discover what the poor in 18th century France discovered, that rich people's heads could be mechanically separated from their shoulders if they wouldn't listen to reason.

Depois disto, prometo começar o me próprio blogue, este fel tem de escorrer para algum lado...

5:53 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Adorei. Adoro sempre este teu tom irónico e com tanta graça. Só discordo em relação aos caramelos. Eram óoooptimoooos!!!!

5:53 da tarde  
Blogger João Villalobos said...

caro Luís,
Ora aí está uma ideia! A única parte má de teres um blogue é que significa menos tempo para estas visitinhas :)

5:56 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Eu sou rápido...

6:05 da tarde  
Blogger Paulo Cunha Porto said...

Lamento, pelo narrador, como pelo desfecho, que a rapariga do bar não se chamasse... Brigitte Bardot!
A frase final estaria a mais.

9:26 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Estará a rapariga na Madeira com o Alberto João?

10:27 da tarde  
Blogger jacky said...

Obrigada pela visita ao amorizade! Um ano de 2006 recheado de dias felizes :)

11:12 da tarde  

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