21.1.06

Anjos sem desejo

Germano sabia que aquele seria o último encontro com Adelaide e o seu estado de espírito era o de avaliar os próximos momentos como se encontrasse um anjo, que lhe iria comunicar uma decisão transcendente.


A escola era uma velha casa, com muro baixo a separar o recreio da praça da aldeia, três janelas viradas para o curso do sol, uma nespereira, o campo lavrado atrás de outro muro, descendo a encosta.


Entrou na sala, ela estava ao quadro negro, a ensinar álgebra. Não interrompeu a aula e, passado algum tempo, Germano sentou-se ao fundo, como se fosse um dos alunos. Observou o mobiliário pobre, os tampos inclinados das carteiras alinhadas, a imagem severa do chefe de Estado, o crucifixo e o bolor acumulado nos cantos das paredes. Então, Adelaide mandou as crianças para o recreio, esperou pela acalmia do rumor alegre da debandada e veio sentar-se ao lado dele, como se fossem os dois companheiros de carteira.


“Já sei que eles recusaram”, disse Germano, “mas isso não muda nada”.


Tinham mandado o requerimento para poderem casar. Viera indeferido. Dizia a autoridade, com subtileza, que uma professora primária não podia desposar um cavador analfabeto.


“Deixas de ser professora, vamos para o Brasil”. Germano reflectia em voz alta: “Ou melhor, vivemos juntos”.


Ela sorriu: “Não é possível, amor”.


Depois, ficaram calados dez minutos. Ele absorveu cada momento desta serenidade imensa que os rodeava, o riso das crianças que nunca teriam juntos, as vidas que seguiriam a partir dali rumos diferentes. Nas nuvens sem desejo, para sempre parados no tempo. Depois, Germano acariciou-a levemente na mão, levantou-se e saiu para a luminosidade da manhã.

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Que texto lindo!! Sinto até alguma angústia por um destino tão duro das personagens. Mas está muito bem escrito e com muita sensibilidade.

9:55 da tarde  
Blogger luisnaves said...

obrigado pelos vossos amáveis comentários

3:19 da tarde  
Blogger Nuno Vieira said...

gostei muito.

abraço

12:05 da manhã  

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