1.1.06

Microcosmos IV

Não consigo sentir mais do que amarga melancolia nestes dias de festa obrigatória. Decidira enfrascar-me sozinho. Mas, antes de me lançar nos braços da solidão, saí de casa, para dar uma volta ao bilhar grande. Nem tive tempo de sentir o frio da rua. Mal tinha saído da escada, ainda envolto no calor da casa, vi luz na loja de Kornel Szigeti e mudei de planos. Pensei que ele estivesse com disposição para um bocado de conversa, por isso bati-lhe à porta. O Kornel é um cinquentão que vive para a sua loja de antiguidades. Tem um típico sentido de humor judeu. Mas eu devia ter estranhado aquela luz magra num 31 de Dezembro. Demoraram a abrir a porta. Senti que alguém se aproximava, depois ouvi uma voz feminina. O sacana estava acompanhado, mas já não havia fuga possível. A porta abriu-se e na penumbra vi a caverna de Ali Babá, em primeiro plano surgia o vulto de uma mulher. Reconheci-a: era Eszter, a viúva do primeiro andar, uma tímida, nos seus quarenta e tais. Cumprimentava-me sempre com extrema delicadeza, mas nunca me interessei sobre a sua vida. Agora, abria-me a porta. “Ah, é você?”, disse ela, num embaraço. E já se ouvia, atrás, a voz de Kornel, que vinha do fundo, de uma habitação que mantinha nas traseiras e onde por vezes dormia uma sesta.


“Vens a tempo”, disse ele, “ Íamos agora abrir a garrafa de espumante”.


“Não se incomodem. Ainda nem são dez horas”, objectei.


Kornel voltou para dentro, ainda a meter a camisa dentro das calças. Eu e Eszter sentámo-nos no sofá de exposição, no meio do mobiliário, das pratas, dos livros antigos, quadros. Olhámos um para o outro e notei que a minha vizinha parecia mais feliz. A sua antiga beleza emergira à superfície do corpo, que tinha readquirido elasticidade, como se uma energia interna brotasse de cada poro da pele. Sorri e ela corou. O meu amigo regressara com uma garrafa, que abriu, com estrondo. Usámos copos de cristal e bebemos o espumante. Não conversámos muito. Ele gracejou, Eszter ria-se de quase tudo. Eles os dois brilhavam como jóias dentro de água transparente. Eu apenas observava. Depois, decidi sair:


“Meu querido Kornel Esti*, agora já se está mesmo a fazer tarde”.


“Pelo contrário, nunca é tarde, nunca é tarde”.


Rimos os três, eu fui-me embora. De repente, a felicidade de outros fazia parte de mim. Decidi deambular pelas ruas quase vazias. A neve cobrira a rua Rákóczi, até à ponte Erzsébet. Havia uma mistura de neblina soturna, o lençol branco, fantasmagórico, as fachadas pesadas dos velhos palácios e as luzes da iluminação pública banhando aquilo com reflexos cor de bronze. Passavam alguns carros, prudentes, no piso escorregadio. E pessoas isoladas, talvez como eu, sem ninguém ao lado. Foi então que se ouviu um clamor súbito. “Buék! Buék!”. Gente vinha às janelas e gritava “Bom Ano! Bom ano!”, batendo panelas, num tumulto. E, pouco depois, ouvia-se do interior das casas, das televisões aos berros, o hino nacional. “Deus abençoe os húngaros”. A música parecia vir de todos os lados, tal como a bem-aventurança, misturada de melancolia, que me invadiu de repente, como se fosse sobretudo coisa minha.



* Impossível de traduzir. Literalmente, Kornel Nocturno, personagem do genial escritor húngaro Dezsö Kosztolányi (1885-1936). Kosztolányi forma com Musil, Kafka e Roth um quarteto de autores nascidos no Império austro-húngaro e que, de alguma forma, escreveram sobre o fim do império. Kormányos tem claras afinidades e, por vezes, tenta em vão imitar o seu estilo (nota do tradutor).


Microhistória de Lajos Kormányos, Tradução do original húngaro: Luís Naves

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Adorei a história. Há aqui tanta solidão! Devo confessar que me deixou um bocadinho triste. Mas adorei a sensibilidade como está escrita. Bom Ano, Luis.

3:51 da tarde  

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