O Carregado
“Quem é aquela figura extraordinária?” perguntei ao meu primo.
“É o incendiário”, disse ele.
O homem não tinha mais de 30 anos, era alto, cabelo desgrenhado, ar de desmazelo. Entrara no café da aldeia (que também servia como mercearia) e ficara pelo menos cinco minutos parado à frente do balcão, antes que o dono do café se dignasse olhar para ele. O proprietário perguntou ao intruso o que queria, mas fê-lo com um desprezo que despertou a minha atenção de turista.
Nas duas semanas que eu passara em Vila Fria, para visitar o meu primo Manuel, jamais vira aquele homem bizarro, que não deixara de mostrar uma quase arrogância na maneira como ignorara o desprezo do outro. Por isso, fiz a pergunta. Aquilo tirava-me da rotina da aldeia antiga, quase despovoada, confusamente pendurada numa colina abrupta.
Só quando o estranho saiu do café o meu primo contou a sua história. Tinha por alcunha “O Carregado” e fora surpreendido em flagrante a largar um incêndio que quase destruíra Vila Fria. “Esteve dois anos preso e voltou há três meses. Vive numa casa fora da aldeia e ninguém fala com ele”.
Estava esclarecido e quase esqueci o incidente. Passei mais cinco dias de férias naquele paraíso. Era Primavera, havia água nas ribeiras, o calor começava a tomar conta da serra. Um dia, ao fim da tarde, fui dar um passeio junto de uma pequena represa a jusante da aldeia. Acho que me perdi, no meio daquela paisagem onde parece que as pessoas deixaram de existir, apenas ficando as ruínas do seu rasto. E, então, de súbito, no meio de nenhures, vi o Carregado, o homem com quem ninguém falava, a ocupar a vereda onde eu seguia. Era assustador, com aquele cabelo desgrenhado, a ameaça no olhar, que cintilava com desdém. Olhei em volta, a ver se via alguma alma que me pudesse ajudar. Mas não havia ninguém. Tinha de passar por ele e foi o que fiz, a rezar que nem um cristão. Ficámos à distância de um metro um do outro. Ele podia matar-me num só gesto. Olhou-me com ódio, à espera que eu passasse. E eu desviei os olhos dele. Cruzámo-nos sem uma palavra.
Depois, esqueci o que acontecera. Passou outra semana. Até ao dia em que me ia embora. Estava a almoçar em casa do meu primo, seguia para Lisboa logo a seguir à refeição. Então, ouviu-se um alarido. “O Carregado matou-se”, dizia uma mulher, lá fora. E vimos da janela, ao fundo da rua, dois homens que vinham a subir para a aldeia, carregando um corpo inerte, um homem desgrenhado e de pescoço partido, que mais parecia um saco.
“É o incendiário”, disse ele.
O homem não tinha mais de 30 anos, era alto, cabelo desgrenhado, ar de desmazelo. Entrara no café da aldeia (que também servia como mercearia) e ficara pelo menos cinco minutos parado à frente do balcão, antes que o dono do café se dignasse olhar para ele. O proprietário perguntou ao intruso o que queria, mas fê-lo com um desprezo que despertou a minha atenção de turista.
Nas duas semanas que eu passara em Vila Fria, para visitar o meu primo Manuel, jamais vira aquele homem bizarro, que não deixara de mostrar uma quase arrogância na maneira como ignorara o desprezo do outro. Por isso, fiz a pergunta. Aquilo tirava-me da rotina da aldeia antiga, quase despovoada, confusamente pendurada numa colina abrupta.
Só quando o estranho saiu do café o meu primo contou a sua história. Tinha por alcunha “O Carregado” e fora surpreendido em flagrante a largar um incêndio que quase destruíra Vila Fria. “Esteve dois anos preso e voltou há três meses. Vive numa casa fora da aldeia e ninguém fala com ele”.
Estava esclarecido e quase esqueci o incidente. Passei mais cinco dias de férias naquele paraíso. Era Primavera, havia água nas ribeiras, o calor começava a tomar conta da serra. Um dia, ao fim da tarde, fui dar um passeio junto de uma pequena represa a jusante da aldeia. Acho que me perdi, no meio daquela paisagem onde parece que as pessoas deixaram de existir, apenas ficando as ruínas do seu rasto. E, então, de súbito, no meio de nenhures, vi o Carregado, o homem com quem ninguém falava, a ocupar a vereda onde eu seguia. Era assustador, com aquele cabelo desgrenhado, a ameaça no olhar, que cintilava com desdém. Olhei em volta, a ver se via alguma alma que me pudesse ajudar. Mas não havia ninguém. Tinha de passar por ele e foi o que fiz, a rezar que nem um cristão. Ficámos à distância de um metro um do outro. Ele podia matar-me num só gesto. Olhou-me com ódio, à espera que eu passasse. E eu desviei os olhos dele. Cruzámo-nos sem uma palavra.
Depois, esqueci o que acontecera. Passou outra semana. Até ao dia em que me ia embora. Estava a almoçar em casa do meu primo, seguia para Lisboa logo a seguir à refeição. Então, ouviu-se um alarido. “O Carregado matou-se”, dizia uma mulher, lá fora. E vimos da janela, ao fundo da rua, dois homens que vinham a subir para a aldeia, carregando um corpo inerte, um homem desgrenhado e de pescoço partido, que mais parecia um saco.
Etiquetas: conto
Caro Luís,
Como me toca essa história..
Sei de um caso semelhante, mas real em que o dito "carregado" numa prisão de coimbra, se queixava qnem o cheque dos 50 contos tinha recebido..
Os serviços prisionais,quando da sua libertação,tiveram q ter todo o encargo de o recolocar noutra localidade (completamente desinserido), para q a população ñ desse cabo dele..
o caloteiro do cheque dos 50 contos continua inserido no seu meio ambiente e ninguém deixou de falar com ele..!!
obrigado por partilhar essa história, blota. sempre me impressionou a forma como as comunidades condenam alguns indivíduos ao ostracismo.´a indiferença e o desprezo dos outros é uma das mais terríveis penas