O hóspede
Eu estava a conversar com um jornalista (penso que era português) quando se aproximou de nós aquela personagem (chamo-lhe assim porque já não sei até que ponto ele faz parte da minha memória inventada). Era moreno e afável, vestido à ocidental, de espessa barba preta. Curiosamente, muito parecido com o meu colega (eles tinham outra semelhança, falavam os dois bem inglês).
“Chamo-me Doutor Aziz”, disse o intruso, insistindo naquele doutor, como se fizesse parte do nome.
Conversámos de forma intermitente ao longo dessa noite. Circulávamos pela festa e, por vezes, reencontrávamo-nos e trocávamos umas palavras.
Existir a festa era já por si uma estranheza. Organizada por um dos homens mais ricos de Islamabad, obrigara a certa logística reunir naquela casa luxuosa tantos correspondentes e repórteres, todos atraídos nessa semana ao Paquistão pela iminência de um conflito no país vizinho.
“Sabe, meu caro Rick, quando for para o interior deste país e alguém lhe disser ‘É meu hóspede’ não terá mais nada a recear”. O doutor Aziz tinha um copo de sumo na mão e, ao dizer-me aquilo, ficou algum de tempo à espera, a olhar para mim.
“Se alguém lhe disser isso em Nova Iorque”, respondi, “veja se ainda tem a sua carteira”. Quis fazer humor. O doutor Aziz riu-se com educação, mas pressenti que ficara desiludido comigo.
Circulámos mais um pouco. Meia hora depois reencontrei-o a conversar com colegas de outros jornais. Um deles dissera que os fundamentalistas iam tomar conta do Paquistão (julgo que foi provocação, para motivar uma resposta, mas era um sítio bizarro para fazer tal afirmação). E o doutor Aziz, com tranquilidade, lá explicava que não era assim, que isso não ia acontecer:
“Julgam que somos monstros?”, perguntou ele, no meio da discussão, mas sem perder a sorridente paciência.
E, quando nos despedimos, segurou-me muito a mão e disse:
“Seja bem-vindo ao meu país. Você, Rick, é meu hóspede”.
Esqueci a simpática despedida. Esqueci a festa, que não era mais do que uma agradável distracção no meu trabalho.
Três dias depois, o meu jornal mandou-me fazer uma reportagem sobre uma manifestação antiocidental. Estavam milhares de populares e o desfile durou horas. A princípio, aquilo não me pareceu mais intenso do que ver compatriotas meus a saírem de um jogo de basebol. Mas, às tantas, quando se gritavam palavras de ordem mais acesas, porque estava um calor terrível, houve como que um tumulto, a multidão perdera as estribeiras, ganhara autonomia, força própria, como um rio fora das margens. Corria-se em múltiplas direcções e as massas humanas chocavam entre si. Comecei a ver caras contorcidas de raiva e a ouvir gritos incendiados.
Até que um homem me puxou para dentro de uma porta, salvando-me da turba. Foi tudo confuso e rápido. Saí da luz para a penumbra. Ele vestia a longa shawaz branca, como todos os outros, colete elegante. Tinha barba negra, espessa e, quando o observei melhor, reconheci o doutor Aziz.
“Que está aqui a fazer, Aziz?” perguntei, sem esconder a minha surpresa.
“Não me chamo Aziz”, disse o desconhecido.
Observei-o de mais perto e cada vez mais me parecia o homem que eu conhecera na festa:
“Mas é você...”
“Claro que sou eu”, riu-se o desconhecido. “Mas chamo-me Daoud”.
E, no entanto, era igual ao outro. Quando a manifestação acalmou, despedimo-nos:
“Você é meu hóspede”, disse ele. E não o vi mais.
Nem sequer posso afirmar que isto seja uma história. A tarefa de um repórter é a de dar sentido ao mundo que observa. Mas se o mundo tem sentido e a história direcção, então a minha tarefa deveria ser a de encontrar aqui uma determinada ordem. Mas, embora os tenha visto, nem sei se Aziz e Daoud existem mesmo ou se são aquilo que pareciam, pois o mundo não passa de um vasto conjunto de factos, cuja essência e verdade nos escapam a cada momento.
“Chamo-me Doutor Aziz”, disse o intruso, insistindo naquele doutor, como se fizesse parte do nome.
Conversámos de forma intermitente ao longo dessa noite. Circulávamos pela festa e, por vezes, reencontrávamo-nos e trocávamos umas palavras.
Existir a festa era já por si uma estranheza. Organizada por um dos homens mais ricos de Islamabad, obrigara a certa logística reunir naquela casa luxuosa tantos correspondentes e repórteres, todos atraídos nessa semana ao Paquistão pela iminência de um conflito no país vizinho.
“Sabe, meu caro Rick, quando for para o interior deste país e alguém lhe disser ‘É meu hóspede’ não terá mais nada a recear”. O doutor Aziz tinha um copo de sumo na mão e, ao dizer-me aquilo, ficou algum de tempo à espera, a olhar para mim.
“Se alguém lhe disser isso em Nova Iorque”, respondi, “veja se ainda tem a sua carteira”. Quis fazer humor. O doutor Aziz riu-se com educação, mas pressenti que ficara desiludido comigo.
Circulámos mais um pouco. Meia hora depois reencontrei-o a conversar com colegas de outros jornais. Um deles dissera que os fundamentalistas iam tomar conta do Paquistão (julgo que foi provocação, para motivar uma resposta, mas era um sítio bizarro para fazer tal afirmação). E o doutor Aziz, com tranquilidade, lá explicava que não era assim, que isso não ia acontecer:
“Julgam que somos monstros?”, perguntou ele, no meio da discussão, mas sem perder a sorridente paciência.
E, quando nos despedimos, segurou-me muito a mão e disse:
“Seja bem-vindo ao meu país. Você, Rick, é meu hóspede”.
Esqueci a simpática despedida. Esqueci a festa, que não era mais do que uma agradável distracção no meu trabalho.
Três dias depois, o meu jornal mandou-me fazer uma reportagem sobre uma manifestação antiocidental. Estavam milhares de populares e o desfile durou horas. A princípio, aquilo não me pareceu mais intenso do que ver compatriotas meus a saírem de um jogo de basebol. Mas, às tantas, quando se gritavam palavras de ordem mais acesas, porque estava um calor terrível, houve como que um tumulto, a multidão perdera as estribeiras, ganhara autonomia, força própria, como um rio fora das margens. Corria-se em múltiplas direcções e as massas humanas chocavam entre si. Comecei a ver caras contorcidas de raiva e a ouvir gritos incendiados.
Até que um homem me puxou para dentro de uma porta, salvando-me da turba. Foi tudo confuso e rápido. Saí da luz para a penumbra. Ele vestia a longa shawaz branca, como todos os outros, colete elegante. Tinha barba negra, espessa e, quando o observei melhor, reconheci o doutor Aziz.
“Que está aqui a fazer, Aziz?” perguntei, sem esconder a minha surpresa.
“Não me chamo Aziz”, disse o desconhecido.
Observei-o de mais perto e cada vez mais me parecia o homem que eu conhecera na festa:
“Mas é você...”
“Claro que sou eu”, riu-se o desconhecido. “Mas chamo-me Daoud”.
E, no entanto, era igual ao outro. Quando a manifestação acalmou, despedimo-nos:
“Você é meu hóspede”, disse ele. E não o vi mais.
Nem sequer posso afirmar que isto seja uma história. A tarefa de um repórter é a de dar sentido ao mundo que observa. Mas se o mundo tem sentido e a história direcção, então a minha tarefa deveria ser a de encontrar aqui uma determinada ordem. Mas, embora os tenha visto, nem sei se Aziz e Daoud existem mesmo ou se são aquilo que pareciam, pois o mundo não passa de um vasto conjunto de factos, cuja essência e verdade nos escapam a cada momento.
Gostava de conseguir dizer algo mais inteligente... Mas as palavras nao me vem a cabeça...
Gostei! E claro, tinha que retribuir o comment que me dirigou no meu flog.. :\ Entendivel? Ainda duvido...
:) Parabens. Gosto da forma como escreve..
Sweet Kiss *
Cara Ritinha,
Este texto não é meu mas do meu amigo e co-autor deste blogue Luis Naves. Ainda bem que gostou e estou certo de que ele vai apreciar o comentário.
Quanto às frases inteligentes, não há que preocupar-se. Elas são muitas vezes inimigas do coração :)
Um beijo para si também
As frases inteligentes são muitas vezes inimigas do coração?...
:\ Entao eu vou ser muito pouco inteligente ao disser-lhe que discordo...
Ah, e sim, desvio os elogios ao texto para o seu amigo e co-autor deste blog Luis Naves.
:)
obrigado pelos vossos simpáticos comentários. E gostaria de acrescentar uma pequena ideia: o coração é inteligente, pois a nossa inteligência é comandada pela emoção.
Finalmente o Luís Naves manifesta-se em resposta a comentários no blogue.
Hurra!!! Parabéns pela sua escrita, Luís... há algum tempo que sou sua leitora assídua e é notório que, em si, o coração é guia da mente e que, da conjugação e perfeita sintonia entre ambos, nascem os belos textos que nos vai deixando ler.
Um beijo.
Um belo elogio. Obrigado