Da obscura bruma, cinzenta e fria, saiu aquele par de silhuetas. O rapaz era alto e magro, vinha agasalhado com um cachecol velho que destoava do sobretudo. Pela trela, o cão rafeiro, com costela de pastor-alemão. Os dois desceram devagar a rampa asfaltada e o homem escolheu um banco de jardim, onde se sentou, apesar da forte humidade. Depois, largou o cão da trela e disse, em voz alta, como se conversasse:
“Podes ir, Átila, mas não te afastes muito”, e admoestava o rafeiro com o dedo espetado.
A princípio, o animal largou por ali fora, deu três pulos no relvado, cheirou algumas árvores, depois voltou para junto do rapaz, que meditava, a observar o espaço confinado no nevoeiro, as copas de arvoredo no fim do descampado do jardim, as folhas amareladas das árvores mais próximas, a luz que tentava romper a barreira das nuvens.
O cão ficara em frente ao rapaz, sentado sobre as patas traseiras, à espera, a observar o que faria o humano:
“Queres saber como é papar a velhota...”, disse o homem, para puxar conversa.
O cão moveu a cabeça para o lado; talvez para escutar melhor, talvez para tentar compreender a ordem dos sons que o humano fizera.
“Pois, meu amigo, tem os seus problemas”.
O focinho avançara ligeiramente, como que numa interrogação.
“Papar a velhota, digo...”
O cão abriu a boca, descontraíra, tinha a língua de fora...
“Tu deves achar esquisito. Apareci em tua casa, assim, sem aviso, tu percebeste logo ao que eu vinha...Mas, no fundo, não podes compreender porque estou com a tua dona...”
O cão ficara ainda mais atento, o olhar interrogador, insatisfeito...
“Ela controla tudo, sabes. Divorciada, sem filhos, tem dinheiro. E já chegou à idade em que as mulheres se estão nas tintas para as aparências, podem namorar com um tipo como eu, que sou um solteiro desempregado, ainda por cima ambicioso. Olha para o sobretudo”, e mostrou a qualidade do tecido ao canino, que cheirou o casaco, “boa matéria, um presente, foi ela que me comprou...”
O homem recostou-se melhor no banco do jardim.
“Achas mal? Tu também dependes dela...”
O cão de novo tinha a língua de fora, como se concordasse...
“Gostei de a conhecer. Um dia, claro, vou-me embora...Ela vai chorar umas semanas e depois procura outro matulão como eu. Ou talvez nem chore. Aponta o dedo e diz que a porta é serventia da casa. Temos vinte anos de diferença e ambos sabemos que isto não é para casar. O ideal seria ela arranjar-me um emprego. Até esse dia, dá-me presentes...Não achas bem!!
Era uma afirmação. O tom de voz mudara, tornara-se áspero. O cão apercebera-se da transformação e olhou para o rapaz, à procura de pistas para compreender o motivo da transição. Depois, distraiu-se, olhou para o lado e rosnou, na direcção do vazio. Houve uma pausa e, do nevoeiro surgiam dois vultos; eram dois homens jovens, que também desciam o caminho asfaltado no meio do parque público. Vinham a conversar. Aproximaram-se. Pararam junto ao rapaz do sobretudo. Dois
skinheads.
“É feroz, o rafeiro?”, perguntou o primeiro skin, apontando para o cão.
“Chama-se Átila, portanto, deve ser mau como as cobras”, respondeu o rapaz.
O segundo
skin acocorara-se ao lado do animal. Começou a fazer-lhe festas no pescoço e na nuca.
“A mim, parece-me manso”, disse.
Ficaram os quatro ali um bocado. Então, o segundo
skin foi correr com Átila no relvado; o primeiro ficou de pé, ao lado do rapaz do sobretudo:
“Tu não trabalhavas naquela fábrica que fechou?”, perguntou o
skin.
O rapaz fez um gesto, a dizer que sim.
“Eu também. Não te lembras de mim? Trabalhava na secção de polimento. Mas, na altura, usava cabelo comprido...”
“Ah, sim! Lembro-me...E arranjaste emprego?”
“Não, ando pra qui...Tu, é que tás a subir na vida, casaquinho à maneira...”
“Nem por isso...Tenho uma velhota por conta... É professora e tem narta”
“Dá-te umas lições...”
“Nem por isso...”
“O cão é teu?”
“É dela. Eu só o vim passear.”
Átila e o outro jovem tinham regressado. Os
skins foram embora, mas só se despediram do animal, com grandes festas no pescoço, no dorso e amigáveis palmadas na nuca.
(...)
O parque parecia ter mergulhado numa espécie de intervalo, a cidade imperceptível atrás da névoa densa e os pensamentos a fluírem sem nexo.
“E aqui estamos nós os dois sem termos para onde ir”, disse o rapaz.
E o cão gemeu um pouco, como se entendesse o humano; inclinou a cabeça, como se tivesse pena dele; abriu muitos os olhos, como se quisesse dar-lhe força.
“E tu aqui a perceberes tudo o que eu dizia, meu malandro...”
E, depois, com um riso breve: “vamos pra casa, Átila”.
Nota: Este conto tem forma de resumo e ritmo errado, a exigir mais pormenores, mas paradoxalmente ficou demasiado longo para o tipo de forma adequada a blogue. Prazeres Minúsculos é uma espécie de oficina de escrita, com objectos concluídos e outros não terminados, como é este caso. Não consegui fazer este post mais pequeno, pelo que os leitores necessitam de dupla paciência, a de imaginarem os hiatos e a de suportarem a extensão...Etiquetas: conto