20.5.06

Passeio com Átila

Da obscura bruma, cinzenta e fria, saiu aquele par de silhuetas. O rapaz era alto e magro, vinha agasalhado com um cachecol velho que destoava do sobretudo. Pela trela, o cão rafeiro, com costela de pastor-alemão. Os dois desceram devagar a rampa asfaltada e o homem escolheu um banco de jardim, onde se sentou, apesar da forte humidade. Depois, largou o cão da trela e disse, em voz alta, como se conversasse:
“Podes ir, Átila, mas não te afastes muito”, e admoestava o rafeiro com o dedo espetado.
A princípio, o animal largou por ali fora, deu três pulos no relvado, cheirou algumas árvores, depois voltou para junto do rapaz, que meditava, a observar o espaço confinado no nevoeiro, as copas de arvoredo no fim do descampado do jardim, as folhas amareladas das árvores mais próximas, a luz que tentava romper a barreira das nuvens.
O cão ficara em frente ao rapaz, sentado sobre as patas traseiras, à espera, a observar o que faria o humano:
“Queres saber como é papar a velhota...”, disse o homem, para puxar conversa.
O cão moveu a cabeça para o lado; talvez para escutar melhor, talvez para tentar compreender a ordem dos sons que o humano fizera.
“Pois, meu amigo, tem os seus problemas”.
O focinho avançara ligeiramente, como que numa interrogação.
“Papar a velhota, digo...”
O cão abriu a boca, descontraíra, tinha a língua de fora...
“Tu deves achar esquisito. Apareci em tua casa, assim, sem aviso, tu percebeste logo ao que eu vinha...Mas, no fundo, não podes compreender porque estou com a tua dona...”
O cão ficara ainda mais atento, o olhar interrogador, insatisfeito...
“Ela controla tudo, sabes. Divorciada, sem filhos, tem dinheiro. E já chegou à idade em que as mulheres se estão nas tintas para as aparências, podem namorar com um tipo como eu, que sou um solteiro desempregado, ainda por cima ambicioso. Olha para o sobretudo”, e mostrou a qualidade do tecido ao canino, que cheirou o casaco, “boa matéria, um presente, foi ela que me comprou...”
O homem recostou-se melhor no banco do jardim.
“Achas mal? Tu também dependes dela...”
O cão de novo tinha a língua de fora, como se concordasse...
“Gostei de a conhecer. Um dia, claro, vou-me embora...Ela vai chorar umas semanas e depois procura outro matulão como eu. Ou talvez nem chore. Aponta o dedo e diz que a porta é serventia da casa. Temos vinte anos de diferença e ambos sabemos que isto não é para casar. O ideal seria ela arranjar-me um emprego. Até esse dia, dá-me presentes...Não achas bem!!
Era uma afirmação. O tom de voz mudara, tornara-se áspero. O cão apercebera-se da transformação e olhou para o rapaz, à procura de pistas para compreender o motivo da transição. Depois, distraiu-se, olhou para o lado e rosnou, na direcção do vazio. Houve uma pausa e, do nevoeiro surgiam dois vultos; eram dois homens jovens, que também desciam o caminho asfaltado no meio do parque público. Vinham a conversar. Aproximaram-se. Pararam junto ao rapaz do sobretudo. Dois skinheads.
“É feroz, o rafeiro?”, perguntou o primeiro skin, apontando para o cão.
“Chama-se Átila, portanto, deve ser mau como as cobras”, respondeu o rapaz.
O segundo skin acocorara-se ao lado do animal. Começou a fazer-lhe festas no pescoço e na nuca.
“A mim, parece-me manso”, disse.
Ficaram os quatro ali um bocado. Então, o segundo skin foi correr com Átila no relvado; o primeiro ficou de pé, ao lado do rapaz do sobretudo:
“Tu não trabalhavas naquela fábrica que fechou?”, perguntou o skin.
O rapaz fez um gesto, a dizer que sim.
“Eu também. Não te lembras de mim? Trabalhava na secção de polimento. Mas, na altura, usava cabelo comprido...”
“Ah, sim! Lembro-me...E arranjaste emprego?”
“Não, ando pra qui...Tu, é que tás a subir na vida, casaquinho à maneira...”
“Nem por isso...Tenho uma velhota por conta... É professora e tem narta”
“Dá-te umas lições...”
“Nem por isso...”
“O cão é teu?”
“É dela. Eu só o vim passear.”
Átila e o outro jovem tinham regressado. Os skins foram embora, mas só se despediram do animal, com grandes festas no pescoço, no dorso e amigáveis palmadas na nuca.
(...)
O parque parecia ter mergulhado numa espécie de intervalo, a cidade imperceptível atrás da névoa densa e os pensamentos a fluírem sem nexo.
“E aqui estamos nós os dois sem termos para onde ir”, disse o rapaz.
E o cão gemeu um pouco, como se entendesse o humano; inclinou a cabeça, como se tivesse pena dele; abriu muitos os olhos, como se quisesse dar-lhe força.
“E tu aqui a perceberes tudo o que eu dizia, meu malandro...”
E, depois, com um riso breve: “vamos pra casa, Átila”.


Nota: Este conto tem forma de resumo e ritmo errado, a exigir mais pormenores, mas paradoxalmente ficou demasiado longo para o tipo de forma adequada a blogue. Prazeres Minúsculos é uma espécie de oficina de escrita, com objectos concluídos e outros não terminados, como é este caso. Não consegui fazer este post mais pequeno, pelo que os leitores necessitam de dupla paciência, a de imaginarem os hiatos e a de suportarem a extensão...

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8 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Olá Luis
Assim não vale! Nós é que temos que comentar!

8:15 da tarde  
Blogger luisnaves said...

mas ninguém comenta!

10:11 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

os post são como uma bola que atiras contra alguém. se for de algodão ninguém te liga, se for de chumbo: -"AÍ".
obténs uma reacção. se essa bola tiver as cores certas no local certo, obténs o post perfeito.

4:24 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Então está bem. Gostei muito da conversa até (...). Depois parece-me que acabou um tanto ou quanto precipitadamente. Gosto das suas histórias curtas e incisivas.

8:31 da tarde  
Blogger luisnaves said...

Agradeço os vossos comentários. à Sofia, SM e Jacinto. Concordo com a Sofia, sobre a quebra, que é lamentável num conto, mas já estava tão extenso que decidi publicar assim, retirando-lhe uma parte. São as limitações dos blogues. Em relação ao comentário do Jacinto, penso que também há literatura de algodão, ou seja, que não existe uma escolha simples entre algodão ou chumbo, mas que os dois podem conviver e que a emoção não é um exclusivo do chumbo. Neste caso, tentei fazer um conto onde pudesse mostrar aspectos do quotidiano sem que eles parecessem demasiado dramáticos, um pouco como a vida, onde o sem nada de especial merecesse a dignidade de existir em ficção.

9:28 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

nunca pensei concordar com o villalobos.

3:33 da tarde  
Blogger João Villalobos said...

Talvez porque este Villalobos é outro :)

7:49 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

kual é este?

7:34 da manhã  

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