2.5.06

Recordação

Nos consultórios não há espelhos. Se houvesse, teria visto as pregas de pele que deformavam o seu corpo outrora liso, agora pouco mais do que o tronco curvado na cadeira, como se fosse um arco de pedra à beira de ruir.
A jovem médica auscultava o tórax, aproximara-se dele, e o velho sentiu uma vergonha súbita, embora a imaginação flutuasse e o gesto fosse também a aproximação de uma mulher. Mas, no fundo da consciência, não podia fugir da realidade do seu corpo em declínio.
Respire fundo, disse ela, e o velho tentou, mas a inspiração saiu-lhe frouxa.
Está magro, tem de comer, sentenciou a médica, enquanto se sentava, arrumando o estetoscópio.
Foi então, quando a médica, compenetrada, começava a garatujar numa folha de receitas, que o velho recordou Úrsula. Quase disse em voz alta que Úrsula tinha aquele nome feio, mas que era um pedaço de mulher. Mas não disse nada, apenas lhe saiu da boca um murmúrio que também podia ser um desabafo ou um gemido de dor...
...Úrsula tinha o noivo pelo braço, mas sorrira para ele, só para ele, o velho que já não era velho e que delirava numa recordação. Ao fundo, nuvens ameaçavam o arraial, levantara-se um vento e os músicos procuravam sair do estrado para se protegerem da chuva iminente; o noivo chamou-a ao correr, mas Úrsula não saíra do mesmo sítio, até que começou a chover e onde antes havia um baile restaram apenas dois jovens, que pareciam conversar em silêncio, infinitamente, enquanto a chuva crescia...
...Pode vestir-se, disse a médica, e o velho agarrou na camisola interior e torceu o corpo, para tentar enfiar o braço na manga. Sentiu uma dor ligeira nos ossos. Percebeu porque se lembrara de Úrsula, a médica tinha uma semelhança com ela, a forma das sobrancelhas era exactamente idêntica...
...Úrsula descia as escadas e ele estava em baixo. Tirara o chapéu para a cumprimentar, não queria fazer mais nada, mas então segurou-a pelo pulso, como se pudesse também suspender o movimento e agarrar o tempo naquele instante. Úrsula tirou ligeiramente a mão do corrimão, mas não sacudiu os seus dedos, não o afastou, sorrira de novo, porque o aceitava, porque o aceitava...
...Tem de tomar estes remédios: a médica estendera-lhe a folha de receitas. E não se pode enganar. Qual é o seu número de utente? O velho abotoava o casaco e apertava o cinto das calças. Lembrou-se de uma das perguntas que pleneara fazer: E vai passar a dor? Sim, num instante, vai passar a dor!...
...O quarto era pequeno, como aquele gabinete de consultório. Úrsula ficara de costas, virada para a janela minúscula, o vestido branco com flores pintadas, talvez pensasse na pneumonia que a ia matar quatro meses depois. Será que me amas? perguntou, a falar para a vidraça. E ele mentiu, que sim, que sim, aproximando-se devagar, até lhe tocar muito ligeiramente no ombro, para a segurar, para que não fugisse dos seus sonhos, com a sua pele lisa, o cabelo castanho escuro e o sorriso delicado...
...Quando tomar os remédios, tem de seguir estas instruções, disse a médica, não se pode enganar. O velho percebera que a consulta terminava. Levantou-se, sem saber bem o que fazer a seguir, se havia ainda alguma coisa a esclarecer. Lembrou-se de repente e perguntou se ia ficar melhor. Que sim, que sim, mentiu a médica, empurrando-o suavemente para fora do consultório.

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3 Comments:

Blogger Clotilde S. said...

Há mentiras tão bem maquilhadas, que mais parecem verdades e
quão infinitamente mais infelizes seríamos, se a verdade estivesse espelhada por todo o lado.Gostei deste texto, tristemente nostálgico, em que os "sim sim" mais não são que eufemismos, pequenas mentiras doces.

11:02 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Gostei imenso.

8:49 da tarde  
Blogger luisnaves said...

Agradeço muito os vossos comentários. E rosinha, certamente que a vida não é assim tão triste, pelo contrário, tem muitos bons momentos

9:14 da manhã  

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