12.5.06

Balada do gato e do louco

Quando naufraguei na banheira, nem a toalha salvei. Senti os dedos enrugados muito antes do sangue se misturar com a água: já não tépida; fria. A forte dor no pé arrojou-se contra os azulejos brancos e trouxe no ressalto um par de lágrimas. E outras mais vieram: chorei. Ou molhei simplesmente a cara, quando as pernas se sentiram impedidas de suportar o corpo. E no jorro fundiu-se o desmaio e as pálpebras e a torneira e o ralo por onde (imagino) continuou a escorrer a água levemente corada.
Acordei repousado a muitos quilómetros de distância. Em cama visitada antes e à qual sempre temera regressar. A oportunidade de me espreguiçar suplantou a repulsa que apenas gemeu de mansinho enquanto atacava o pequeno-almoço. Delicioso café. Com o gato estabelecera regras. Pequenos jogos solitários a dois. Enquanto ele tomava a maior parte da casa eu tocava o silêncio. Os dois – gato e silêncio – bastavam como quotidiano. Supérflua qualquer outra manifestação da contagem do tempo.
Na cama, posteriormente ao episódio da banheira e farto de café e torradas, dei-me conta da perda do silêncio. Num dos tímpanos – difícil lembrar se o direito, se o esquerdo – sentia um incómodo ruído, vibração de centenas de botas militares marchando ao longe num piso de madeira. E a casa enchia-se de centenas dessas botas engraxadas de militares engalanados. Nessa casa aonde sempre temera regressar.
Perdera o silêncio e um gato: deixara de viver o mundo dos surdos. Habituara-me a ser solitário e enfermiço: que poderia fazer agora com tanto ouvido? Que poderia fazer agora senão encerrar-me para sempre no mundo, sem nunca, mesmo nunca, sair a caminhar com o gato e o silêncio pela casa. Condenado a ficar lá fora, podia ver como o gato rasgava com as unhas o reposteiro. Queria sair lá para dentro e lembrar-lhe as regras estabelecidas, ao invés depositei raízes numa cama essencialmente branca, aceitei visitas de uma hora aos domingos, centenas de comprimidos por dia e um fio de baba sempre a escorrer pelo queixo. As mulheres de branco não chateiam, se ignoras a estranha propensão de te tratarem como louco. Mas não posso deixar de sentir falta do gato e do silêncio.

4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Bom!

7:59 da tarde  
Blogger João Villalobos said...

Bem vindo António. Um abraço.

8:56 da tarde  
Blogger António Rodrigues said...

Obrigado por me receberem neste cantinho.

6:13 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Estranho!
superficial para quem lê
Profundo para quem sente!
O silêncio é ensurdecedor quando visto dessa forma!
Gostei muito :)

2:18 da tarde  

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