17.5.06

Uma amizade

Daniel enviara-me um sms a dizer que a amizade valia mais do que tudo o resto, mas apaguei a mensagem. Os meus dedos passaram depressa por três teclas e já estava, foi como se as palavras tivessem morrido e como se o desaparecimento daquelas letras (agora sem nexo) diluísse a imagem que eu ainda tinha dele. Algo se fragmentara na minha alma, após o gesto, mas a perda de consistência não era um acontecimento preciso, apenas uma sensação vagamente desagradável, a que se tem quando algo termina.
Só então assentou a ideia concreta da crueldade. Ao suprimir a mensagem, parecia ter iniciado um processo irreversível de apagar Daniel da minha memória.
Lembro-me dele, ainda antes de sofrer a depressão. Era um rapaz franzino e calado, um pouco melancólico, com óculos redondos pendurados no nariz aquilino. Durante meses, fomos colegas de trabalho, criámos uma amizade e formámos uma bem sucedida dupla de solteirões na noite de Lisboa.
Ele foi um dos convidados no meu copo-de-água, quando decidi mudar para a equipa dos casados. Talvez ele não se recorde particularmente da cerimónia, bebera demasiado, mas às tantas estava agarrado ao meu smoking, quase a rasgar o tecido, a dizer que sentia uma espécie de inveja, tão bonita era a minha noiva.
A beleza engana muito, agora sei disso. E as noivas têm ciúme dos melhores amigos, essas figuras sem lugar. Três é uma multidão, como se costuma dizer. Eu tinha um novo emprego e a minha vida mudara, mas esse primeiro casamento (que durou quatro anos) foi um período sufocante e obsessivo.
Enfim, havia muito em que pensar, por isso também mudara a minha amizade com Daniel. As nossas vidas foram divergindo, mas o processo deu-se com lentidão. Encontrávamo-nos por vezes, mas tínhamos cada vez menos sobre o que falar, como se esse afastamento fosse sobretudo coisa mental. O terreno comum encolhia sob os nossos pés, mas isso nada tinha de trágico, era um facto aceite de maneira conformista. A amizade transformara-se em algo de dinâmico, como se fosse um mar, cujas metamorfoses não são imediatamente visíveis, mas apenas pressentidas. Sombras que passam, cores que mudam, água que se agita, a paisagem mudando em pormenores e minúsculas subtilezas.
Quando o Daniel teve a depressão, a nossa amizade evoluiu de novo. Nunca verdadeiramente me perdoei por não ter reparado no estado em que ele estava. Emagrecera, desaparecia da vista durante semanas (e eu não lhe telefonava durante semanas); e, quando nos encontrávamos, parecia mais sorumbático do que era habitual, de branda palidez; sempre apressado, para recolher à sua solidão. Eu não entendia a natureza da doença e, quando o tentei ajudar, fazê-lo sair do estado de tristeza, ele afastou-me bruscamente. Embora esse gesto fosse consequência do mal, ofendi-me. O afastamento durou seis meses. Quando reencontrei Daniel, por acaso, na rua, ele contou-me o inferno que passara naquele período.
Nunca mais seria o mesmo. Transformara-se numa pessoa demasiado controlada, que evitava multidões, com fobias constantes. Perdera o emprego antigo, empobrecera, enfurecia-se, não conseguia manter relações estáveis. Por isso, Daniel era um solitário. Ficava mais alegre quando estava comigo, mas fui-me afastando dele. E não consigo definir as razões.
Ele embaraçava-me, talvez. A nossa amizade morria, devagar, e o elo fraco da ponte que se desfazia era eu.
Nessa véspera de Natal, Daniel enviou-me uma mensagem a dizer que a amizade era o mais importante. Apaguei a mensagem e, nesse gesto, apaguei sem remorso uma parte da minha vida.

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2 Comments:

Blogger MySelf said...

Conseguiste 'deitar' cá para fora o que sentes e isso é muito bom.

9:12 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Acho que quase todas as pessoas se revem nesta história. Porque quase todas perderam um amigo dessa forma...

E uma sms é apenas uma sms... o siginificado somos nós que lho damos...e tu dar-lhe-ás o significado que entenderes...

Vale-te da tua clarividência, da tua lucidez e da tua capacidade de análise... Utiliza-as...pois doutra forma são estéreis...

(Fiquei muito sensiblizada com este texto)

10:38 da tarde  

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