De como o gato Iskra (Faísca) salvou a Humanidade
O velho Mikhail Petrovitch olhou para a brancura da neve, lá fora, e suspirou profundamente. Pareceu perder-se nos seus pensamentos, e só então me dei conta da importância da minha pergunta sobre o que realmente acontecera naquele dia confuso de Abril. Depois, bebeu um pouco do chá que tinha sobre a mesa (notei os seus dedos extremamente finos) e sorriu com uma recordação qualquer. Era como se eu já não estivesse ali.
“Em que está a pensar, Mikhail Petrovitch ?”, perguntei.
O velho sorriu ainda mais. Quase ria:
“Num gato! Chamava-se Iskra e fazia justiça ao nome, parecia uma faísca a correr pela dacha do secretário Korillov. E a sua pergunta anterior sobre aqueles dias da transição de poder fez-me lembrar aquela bola de pêlo ruivo que corria pela casa. O gato que salvou a Humanidade”.
E ao dizer isto, largou uma genuína risada. Depois, ficou em silêncio, e ouvia-se a imensa tranquilidade do mundo. A floresta, do outro lado da estrada, um vento que se erguia sobre a neve, a madeira que estalava no calor da casa.
“O que não percebo, Mikhail Petrovitch, é a ligação entre o gato Iskra e a transição de poder. E como é que o gato salvou a Humanidade?”, perguntei, incrédulo, a pensar que estava a ser gozado.
“Onde é que íamos?”, perguntou o velho. “Ah, a transição! Portanto, depois do secretário-geral ter morrido, houve um vazio de poder durante duas semanas. Os membros do Politburo estavam em luta uns com os outros, excepto Korillov, que teve a liderança durante a transição e, portanto, o poder de escolher o sucessor... Enfim, você já sabe isto tudo... O que não sabe é que houve uma noite de pânico no dia 22. Korillov estava na dacha. Eu também, já que era o secretário pessoal dele. Deviam ser uma cinco da manhã quando chegam três outros membros do Politburo, acompanhados de vários generais. Traziam a mala dos códigos nucleares e pareciam agitados, sobretudo o marechal Getmasov, que era meio paranóico e extremamente incompetente. ‘Temos de atacar antes que eles nos esmaguem’, vociferou o marechal, quando todos entraram no gabinete de trabalho de Korillov, que ainda estava de pijama e parecia patético no seu espanto com aquele alvoroço. Já nem me lembro bem qual era a questão, mas parece que houve um erro de avaliação sobre o que se passava nos silos atómicos dos americanos. Enfim, os generais estavam convencidos de que haveria um ataque nuclear dos Estados Unidos no prazo de uma hora. E gastaram esse tempo a discutir se aquilo era assim, a pedir mais informação. Faltavam dez minutos para o alegado ataque e o clima na sala era de histeria. Todos gritavam, Korillov hesitava. Então, houve uma espécie de intervalo e os espíritos pareciam ter acalmado, como se houvesse ali a iminência de uma grande decisão. Em certo ponto, o secretário Korillov não aguentou mais e vacilou, aceitando um ataque preventivo... Naquela altura não sabíamos, mas uma guerra nuclear seria equivalente ao extermínio da Humanidade... Enfim, alguém se esquecera da mala dos códigos em cima de uma mesa, procuraram-na com o olhar, e lá estava Iskra, a bola de pêlo ruivo, como um diabinho, em cima da mala, a dormir muito refastelado. O marechal Getmasov precipitou-se para a mala, decidido a enxotar o gato, mas foi nessa altura que as coisas se tornaram verdadeiramente alucinantes. Alguma coisa irritara Iskra, que se eriçou contra o marechal, bufando-lhe, furioso com a interrupção do sono ou com algum gesto. Estávamos nove pessoas na sala e ficámos estarrecidos. O marechal fez o movimento de quem procura a pistola e teria disparado, mas os militares entravam desarmados nas dachas dos membros do Politburo, cuja segurança pertencia à KGB. Eram regras de segurança do tempo de Stalin. O marechal tinha estado em Estalinegrado, não era uma gatinho inofensivo que o ia travar. Iskra levou um valente safanão e o Getmasov abriu a mala dos códigos, virou-se para Korillov e disse: ‘Tem de dar a ordem, Stepan Stepanovitch”. Korillov ficou a olhar para ele, muito branco, sentado, ainda no seu pijama, com ar indefeso, mas rendido, pronto a dar a ordem. De súbito, Iskra saltou-lhe para o colo e todo o movimento se suspendeu na sala. O gato esticara-se, com as patas de trás sobre as pernas do dono, as da frente no peito dele e o focinho avançado sobre a sua cara. E Iskra começou a lamber a cara de Korillov, a lambê-lo freneticamente, como se pedisse para esperar mais um pouco. ‘O gato não tem medo’, disse Stepan Stepanovitch Korillov. E segurou Iskra, segurou-o com suavidade, dando-lhe festas no dorso, depois recostando-se na cadeira. ‘Esperamos’, ordenou o secretário. O marechal ainda tentou convencê-lo, implorou durante alguns minutos e, então, chegou aquele telefonema que esclarecia todo o mal-entendido. Tinha sido uma ilusão, não havia nenhum ataque americano, apenas más interpretações de informação electrónica. Dias antes de morrer, Korillov disse-me que no momento em que Iskra lhe saltara para o colo tinha pensado em mil coisas diferentes, mas lembrara-se da sua neta e sentira, por um instante, uma presença superior no seu colo. Mas repare que ele não chegou a usar a palavra Deus... Como é que os americanos chamam a isto, Guerra Fria, não é? Pois bem, digo-lhe, meu caro, se nessa Guerra Fria houve autênticos heróis da União Soviética, aquele gato foi um deles”.
Mikhail Petrovitch calou-se. Ficou pensativo um bom bocado. Olhou para a rua, distraído. Talvez pensasse na sua carreira falhada, no seu futuro breve, no poder dos acasos ou na loucura dos homens. Então, quebrando a pausa, concluiu:
“A propos, escreva o seu livro, mas você nunca poderá contar esta história!”
“Em que está a pensar, Mikhail Petrovitch ?”, perguntei.
O velho sorriu ainda mais. Quase ria:
“Num gato! Chamava-se Iskra e fazia justiça ao nome, parecia uma faísca a correr pela dacha do secretário Korillov. E a sua pergunta anterior sobre aqueles dias da transição de poder fez-me lembrar aquela bola de pêlo ruivo que corria pela casa. O gato que salvou a Humanidade”.
E ao dizer isto, largou uma genuína risada. Depois, ficou em silêncio, e ouvia-se a imensa tranquilidade do mundo. A floresta, do outro lado da estrada, um vento que se erguia sobre a neve, a madeira que estalava no calor da casa.
“O que não percebo, Mikhail Petrovitch, é a ligação entre o gato Iskra e a transição de poder. E como é que o gato salvou a Humanidade?”, perguntei, incrédulo, a pensar que estava a ser gozado.
“Onde é que íamos?”, perguntou o velho. “Ah, a transição! Portanto, depois do secretário-geral ter morrido, houve um vazio de poder durante duas semanas. Os membros do Politburo estavam em luta uns com os outros, excepto Korillov, que teve a liderança durante a transição e, portanto, o poder de escolher o sucessor... Enfim, você já sabe isto tudo... O que não sabe é que houve uma noite de pânico no dia 22. Korillov estava na dacha. Eu também, já que era o secretário pessoal dele. Deviam ser uma cinco da manhã quando chegam três outros membros do Politburo, acompanhados de vários generais. Traziam a mala dos códigos nucleares e pareciam agitados, sobretudo o marechal Getmasov, que era meio paranóico e extremamente incompetente. ‘Temos de atacar antes que eles nos esmaguem’, vociferou o marechal, quando todos entraram no gabinete de trabalho de Korillov, que ainda estava de pijama e parecia patético no seu espanto com aquele alvoroço. Já nem me lembro bem qual era a questão, mas parece que houve um erro de avaliação sobre o que se passava nos silos atómicos dos americanos. Enfim, os generais estavam convencidos de que haveria um ataque nuclear dos Estados Unidos no prazo de uma hora. E gastaram esse tempo a discutir se aquilo era assim, a pedir mais informação. Faltavam dez minutos para o alegado ataque e o clima na sala era de histeria. Todos gritavam, Korillov hesitava. Então, houve uma espécie de intervalo e os espíritos pareciam ter acalmado, como se houvesse ali a iminência de uma grande decisão. Em certo ponto, o secretário Korillov não aguentou mais e vacilou, aceitando um ataque preventivo... Naquela altura não sabíamos, mas uma guerra nuclear seria equivalente ao extermínio da Humanidade... Enfim, alguém se esquecera da mala dos códigos em cima de uma mesa, procuraram-na com o olhar, e lá estava Iskra, a bola de pêlo ruivo, como um diabinho, em cima da mala, a dormir muito refastelado. O marechal Getmasov precipitou-se para a mala, decidido a enxotar o gato, mas foi nessa altura que as coisas se tornaram verdadeiramente alucinantes. Alguma coisa irritara Iskra, que se eriçou contra o marechal, bufando-lhe, furioso com a interrupção do sono ou com algum gesto. Estávamos nove pessoas na sala e ficámos estarrecidos. O marechal fez o movimento de quem procura a pistola e teria disparado, mas os militares entravam desarmados nas dachas dos membros do Politburo, cuja segurança pertencia à KGB. Eram regras de segurança do tempo de Stalin. O marechal tinha estado em Estalinegrado, não era uma gatinho inofensivo que o ia travar. Iskra levou um valente safanão e o Getmasov abriu a mala dos códigos, virou-se para Korillov e disse: ‘Tem de dar a ordem, Stepan Stepanovitch”. Korillov ficou a olhar para ele, muito branco, sentado, ainda no seu pijama, com ar indefeso, mas rendido, pronto a dar a ordem. De súbito, Iskra saltou-lhe para o colo e todo o movimento se suspendeu na sala. O gato esticara-se, com as patas de trás sobre as pernas do dono, as da frente no peito dele e o focinho avançado sobre a sua cara. E Iskra começou a lamber a cara de Korillov, a lambê-lo freneticamente, como se pedisse para esperar mais um pouco. ‘O gato não tem medo’, disse Stepan Stepanovitch Korillov. E segurou Iskra, segurou-o com suavidade, dando-lhe festas no dorso, depois recostando-se na cadeira. ‘Esperamos’, ordenou o secretário. O marechal ainda tentou convencê-lo, implorou durante alguns minutos e, então, chegou aquele telefonema que esclarecia todo o mal-entendido. Tinha sido uma ilusão, não havia nenhum ataque americano, apenas más interpretações de informação electrónica. Dias antes de morrer, Korillov disse-me que no momento em que Iskra lhe saltara para o colo tinha pensado em mil coisas diferentes, mas lembrara-se da sua neta e sentira, por um instante, uma presença superior no seu colo. Mas repare que ele não chegou a usar a palavra Deus... Como é que os americanos chamam a isto, Guerra Fria, não é? Pois bem, digo-lhe, meu caro, se nessa Guerra Fria houve autênticos heróis da União Soviética, aquele gato foi um deles”.
Mikhail Petrovitch calou-se. Ficou pensativo um bom bocado. Olhou para a rua, distraído. Talvez pensasse na sua carreira falhada, no seu futuro breve, no poder dos acasos ou na loucura dos homens. Então, quebrando a pausa, concluiu:
“A propos, escreva o seu livro, mas você nunca poderá contar esta história!”
Etiquetas: conto
Gostei muito, principalmente do toque final.
agradeço muito o comentário, sofia
Hey what a great site keep up the work its excellent.
»