2.4.06

A vida passa

A tia Helena trouxera o chá. O bule de porcelana fina, numa elegância contida, que se elevava como uma neblina. E Joana pensou que havia, naquela velha casa, uma estranha quietude, como se fosse uma ilha longe da vida.
“Não sei como consegue ter isto tão arrumado”, disse Joana, quando o relógio de parede acabou de anunciar as horas.
A tia apenas sorriu. Segurava a xícara de chá na palma da mão, um gesto muito dela, que significava talvez protecção de algo frágil ou, por outro lado, uma espécie de distanciamento, o inverso do que Joana pensara inicialmente, era antes a maneira de quem se protegia em concha. De quem dizia “este é o meu mundo”.
Sem se aperceber que atravessava uma fronteira, Joana começou a contar à tia o que ainda não contara a ninguém. Amava o marido e, apesar disso, apaixonara-se por outro homem. Seria possível amar dois homens ao mesmo tempo? Não seria isso injusto para o marido? Mas como deixar aquele novo amor, se o primeiro tinha tantas imperfeições e o segundo parecia um deslumbramento? Foi isto que contou, com os olhos cheios de lágrimas. E, perante o silêncio pensativo da velha, quase se arrependeu. Estava a apoquentá-la! Que podia ela saber destas coisas?
“Uma vez tive uma criadita que partia tudo onde punha a mão. Cheguei a pensar que fazia de propósito”. Foi isto que tia disse, depois daquelas queixas todas. Joana chegou a pensar que ela estava senil. Até a velha prosseguir:
“Quando adoeci, ela tratou de mim. Fiquei a perceber que há pessoas assim, que partem objectos e conseguem colar almas. E há outras que fazem ao contrário, preocupam-se com objectos e, depois, ignoram as almas. E já que falas nele, fica sabendo que o teu marido é boa pessoa!”
“O que aconteceu à criadita?”
“Casou e viveu bem!”
O relógio de parede tilintava de novo. O tempo passava.
“Sei tão pouco sobre si, tia!”
Joana dissera aquilo de forma espontânea, num desabafo. Mas a tia Helena riu-se, corou até, vagamente coquette, como se tivesse recuado sessenta anos.
“Porque se ri?”
“Por nada”.
Passara o instante de encantamento, efeito de misteriosa cadeia de lembranças. A tia Helena regressara à habitual pose entre o frio e o nobre. Disse à sobrinha-neta que a conhecia desde o nascimento, mas isso ela já sabia. Contou-lhe como a vira aos três anos, depois aos cinco, depois aos dez e adolescente.
“Eras tão pequenina!” E depois, sem transição: “Devias vir mais vezes a minha casa!”
“Nunca tenho tempo, tia! A minha vida não deixa!”
Depois, a tia falou de coisas banais. Joana nem a ouviu, pois meditava sobre o que ela dissera, se aquilo se aplicava também aos homens que amara, aos corações que ferira, as ligações que perdera para sempre, por ser tão desastrada.
“Quando disse que sei pouco sobre si, a tia riu-se. Lembrou-se de qualquer coisa. De que se lembrou?”
Houve uma longa pausa, depois a voz quase trémula: “De alguém”.
“E quem era?”
“Chamava-se Francisco Andrade”.
Como se tivesse feito um esforço enorme, a tia Helena ficou triste ou talvez alheada. Também ela passeou o olhar pelos objectos espalhados na sala.
“Porque é que nunca casou, tia?”
“Sabes, Joana? Nós somos parecidas! O Francisco Andrade era um pretendente lindo, com uma carreira estupenda. E que pensei eu? Assustei-me com a felicidade que tinha. Por capricho, achei que podia ser ainda mais feliz do que era e, um dia, rompi o noivado”.
A tia poisara a xícara. Recostou-se na cadeira, as mãos finas entrelaçadas, num gesto desistente, o olhar repleto de melancolia:
“Ele casou com outra! A vida passa, sabes? A vida passa!”

7 Comments:

Blogger Clotilde S. said...

Obrigada por este momento, simultaneamente amargo e doce.Tal como a vida, enquanto vai passando,pois é inegável que a vida passa.
Um abraço

9:50 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Melancolicamente lindo!

9:07 da manhã  
Blogger joana said...

A vida passa mas às vezes é preciso arriscar, querer ser mais feliz.
Há uns anos também eu quis ser mais feliz. Depois de namorar 6 anos com a mesma pessoa, às portas de um casamento anunciado, sem razão nem explicação que fosse considerada válida, terminei tudo.
Lembro-me de ter pensado, na altura, que nunca mais ía arranjar outro homem assim. Estava enganada. Arranjei e tenho consciência que sou mais feliz do que alguma vez fui ou poderia ter sido com ele.
Mas no jogo da vida nem sempre se ganha.

10:53 da manhã  
Blogger luisnaves said...

Obrigado pelos comentários. Não sabemos se a personagem Joana concorda com a CAS, mas eu concordo: às vezes é preciso arriscar

11:13 da manhã  
Blogger isabel said...

A vida... tão estranha, cheia de becos, ruas, caminhos, desvios... por vezes perdemo-nos, as vezes encontramo-nos, outras não, ás vezes vivemos outras vezes fingimos.
Creio que a sua tia Helena viveu á sua maneira.
Há que arriscar e há que ser-se feliz,à nossa maneira

12:55 da tarde  
Blogger Xixao said...

Miss Marple?

2:59 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Boa Mano !
Gostei mesmo deste conto.
Um grande abraço

5:55 da tarde  

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