A queda
Kumar olhou para as cores do crepúsculo, que cobriam os telhados de Husabad com um verniz de bronze. No fundo, o sereno rumor da vida.
Naushad estava à sua frente, na varanda. Permanecera calado, bebericava o chá, enquanto Kumar descrevia a forma como iludira as patrulhas dos britânicos e, numa das ocasiões, até desafiara um sargento sahib, um homem horrível, vermelho como um pimento e que cheirava como uma doninha, encharcado em suor.
“É natural que as patrulhas te tenham deixado passar”, disse Naushad, a voz nasalada em tom de quem dizia uma tranquila banalidade.
“O que queres dizer com isso?”
“Que és um traidor...!”
Afirmado assim, de chofre, para chocar e não haver réplica.
Kumar não resistiu. Os braços caíram-lhe ao longo do corpo. As pernas perdiam a sua força, distenderam-se um pouco. Sentira um curioso alívio, como que uma libertação, após aquelas semanas de pesadelo. Crescia no ar uma espécie de frescura benévola na tarde densa, as nuvens, ainda iluminadas no topo pelo sol descendente, estavam a reunir-se devagar para a chuvada da noite. Um súbito relâmpago iluminou o horizonte, ainda a grande distância.
“Quanto te pagaram, trinta moedas de prata?”, perguntou Naushad, sem emoção.
Kumar não percebera a alusão. Era um bom muçulmano e muito menos culto do que o advogado.
“Ninguém me pagou”.
Responder assim era o mesmo que admitir a traição, mas Kumar não resistira, impulsionado por uma profunda aversão à ideia do amigo o considerar mercenário. Não tenho preço, pensou, envergonhado, não posso explicar.
“Foi simples! Foste seguido! Deixámos de confiar em ti por causa do pobre Akbar e de Ghulam e dos outros. Não compreendíamos como tinhas podido ausentar-te apenas meia hora antes de serem todos presos. Os eras predestinado, bafejado por Allah, ou tinhas sido tu a denunciar os nossos companheiros. Depois, analisámos as coisas, e sempre estavas tu no lugar ideal para traíres a causa...
Kumar baixara a cabeça. O advogado prosseguiu, como um tigre que segura a presa e a estrangula quase com gentileza, uma certa ternura até.
“Mandámos um miúdo seguir-te. Não o conhecias, não reparaste. E demos com o teu encontro, nas traseiras da mesquita, com o tenente inglês: vocês não falaram mais do que 15 segundos, mas demonstra tudo o que acabo de dizer...”
Ficaram os dois calados algum tempo, a olhar para as nuvens que se acumulavam no céu sobre Husabad. Depois, sem dizer uma palavra, tentando fazer o mínimo ruído possível, Kumar saiu da varanda e da casa de Naushad.
Desceu a alameda, na direcção do seu bairro. Não trouxera a bicicleta e, por isso, teria de ir a pé. A meio caminho, começou a chover torrencialmente e, em poucos minutos, a estrada ficara alagada e, sobre o piso incerto, corria um rio tormentoso, tão feroz como os pensamentos que se atropelavam na sua consciência. Lembrou-se da Reshma, a mulher que amava, e que não poderia desposar; agora era para sempre um traidor do seu povo; seria desprezado, deixado sozinho, a vergonha da família...
E apenas obedecera às ordens de Khalid, o chefe do movimento. Ele dissera-lhe para falar com o tenente, insinuar-se, fingir-se traidor, para lhe dar informações falsas. Mas isso teria de ser um segredo só dele e de Khalid; era misterioso e secreto, aquele homem, capaz de inventar terríveis esquemas que baralhavam os ingleses. Sentiu de repente que tinha de contar aquilo ao chefe do movimento, esclarecer o assunto, ele diria aos outros que não havia traição...
Kumar correu. A tempestade crescia à sua volta.
A casa de Khalid ficava num bairro escuro, mas estava iluminada. À porta, um grupo de guarda-costas. Teve de os convencer, que o deixassem passar, tinha um assunto urgente a tratar com Khalid.
Subiu as escadas de madeira mal iluminadas. Dentro de um gabinete apertado havia vários homens, numa reunião de estratégia. Interrompeu-os. Devia parecer um alucinado, com a roupa a pingar e o desespero na cara. A fraca lâmpada eléctrica oscilava no tecto, criando sombras na sala.
“Deixem-me falar a sós com este traidor”, disse Khalid, com um ligeiro sorriso.
Os outros saíram, um deles ainda perguntou ao chefe, antes de fechar a porta, se tinha a certeza de querer ficar sozinho, e Khalid confirmou, sempre a sorrir, a fazer com um gesto um convite para que Kumar se sentasse em frente a ele.
“Só cumpri as tuas ordens”, disse Kumar, “transmitir as informações falsas ao tenente inglês. Sabes disso! O resto da acusação não é verdadeira. Não tenho culpa de ter saído da reunião meia hora antes de serem todos presos”.
“A culpa é uma ideia distante!”, disse Khalid, sem mover um músculo da face. “Não me lembro de te dar essas ordens!”
Kumar ficou sem reacção, de tal forma ficara surpreendido. A ponto de duvidar se era real o que pensava ter acontecido.
Khalid parecia sonhar:
“Todos nós somos instrumentos do futuro, que precisa de glórias e de chacinas; exemplos do bem e do mal; de heróis, mas também de traidores. E é nessa qualidade que preciso de ti”. Depois, chamou os homens que estavam à porta e disse: “Espanquem este traidor, mas não o matem. Precisamos dele vivo, para que os cidadãos de Husabad tenham a quem apontar o dedo, com ódio libertador”.
Naushad estava à sua frente, na varanda. Permanecera calado, bebericava o chá, enquanto Kumar descrevia a forma como iludira as patrulhas dos britânicos e, numa das ocasiões, até desafiara um sargento sahib, um homem horrível, vermelho como um pimento e que cheirava como uma doninha, encharcado em suor.
“É natural que as patrulhas te tenham deixado passar”, disse Naushad, a voz nasalada em tom de quem dizia uma tranquila banalidade.
“O que queres dizer com isso?”
“Que és um traidor...!”
Afirmado assim, de chofre, para chocar e não haver réplica.
Kumar não resistiu. Os braços caíram-lhe ao longo do corpo. As pernas perdiam a sua força, distenderam-se um pouco. Sentira um curioso alívio, como que uma libertação, após aquelas semanas de pesadelo. Crescia no ar uma espécie de frescura benévola na tarde densa, as nuvens, ainda iluminadas no topo pelo sol descendente, estavam a reunir-se devagar para a chuvada da noite. Um súbito relâmpago iluminou o horizonte, ainda a grande distância.
“Quanto te pagaram, trinta moedas de prata?”, perguntou Naushad, sem emoção.
Kumar não percebera a alusão. Era um bom muçulmano e muito menos culto do que o advogado.
“Ninguém me pagou”.
Responder assim era o mesmo que admitir a traição, mas Kumar não resistira, impulsionado por uma profunda aversão à ideia do amigo o considerar mercenário. Não tenho preço, pensou, envergonhado, não posso explicar.
“Foi simples! Foste seguido! Deixámos de confiar em ti por causa do pobre Akbar e de Ghulam e dos outros. Não compreendíamos como tinhas podido ausentar-te apenas meia hora antes de serem todos presos. Os eras predestinado, bafejado por Allah, ou tinhas sido tu a denunciar os nossos companheiros. Depois, analisámos as coisas, e sempre estavas tu no lugar ideal para traíres a causa...
Kumar baixara a cabeça. O advogado prosseguiu, como um tigre que segura a presa e a estrangula quase com gentileza, uma certa ternura até.
“Mandámos um miúdo seguir-te. Não o conhecias, não reparaste. E demos com o teu encontro, nas traseiras da mesquita, com o tenente inglês: vocês não falaram mais do que 15 segundos, mas demonstra tudo o que acabo de dizer...”
Ficaram os dois calados algum tempo, a olhar para as nuvens que se acumulavam no céu sobre Husabad. Depois, sem dizer uma palavra, tentando fazer o mínimo ruído possível, Kumar saiu da varanda e da casa de Naushad.
Desceu a alameda, na direcção do seu bairro. Não trouxera a bicicleta e, por isso, teria de ir a pé. A meio caminho, começou a chover torrencialmente e, em poucos minutos, a estrada ficara alagada e, sobre o piso incerto, corria um rio tormentoso, tão feroz como os pensamentos que se atropelavam na sua consciência. Lembrou-se da Reshma, a mulher que amava, e que não poderia desposar; agora era para sempre um traidor do seu povo; seria desprezado, deixado sozinho, a vergonha da família...
E apenas obedecera às ordens de Khalid, o chefe do movimento. Ele dissera-lhe para falar com o tenente, insinuar-se, fingir-se traidor, para lhe dar informações falsas. Mas isso teria de ser um segredo só dele e de Khalid; era misterioso e secreto, aquele homem, capaz de inventar terríveis esquemas que baralhavam os ingleses. Sentiu de repente que tinha de contar aquilo ao chefe do movimento, esclarecer o assunto, ele diria aos outros que não havia traição...
Kumar correu. A tempestade crescia à sua volta.
A casa de Khalid ficava num bairro escuro, mas estava iluminada. À porta, um grupo de guarda-costas. Teve de os convencer, que o deixassem passar, tinha um assunto urgente a tratar com Khalid.
Subiu as escadas de madeira mal iluminadas. Dentro de um gabinete apertado havia vários homens, numa reunião de estratégia. Interrompeu-os. Devia parecer um alucinado, com a roupa a pingar e o desespero na cara. A fraca lâmpada eléctrica oscilava no tecto, criando sombras na sala.
“Deixem-me falar a sós com este traidor”, disse Khalid, com um ligeiro sorriso.
Os outros saíram, um deles ainda perguntou ao chefe, antes de fechar a porta, se tinha a certeza de querer ficar sozinho, e Khalid confirmou, sempre a sorrir, a fazer com um gesto um convite para que Kumar se sentasse em frente a ele.
“Só cumpri as tuas ordens”, disse Kumar, “transmitir as informações falsas ao tenente inglês. Sabes disso! O resto da acusação não é verdadeira. Não tenho culpa de ter saído da reunião meia hora antes de serem todos presos”.
“A culpa é uma ideia distante!”, disse Khalid, sem mover um músculo da face. “Não me lembro de te dar essas ordens!”
Kumar ficou sem reacção, de tal forma ficara surpreendido. A ponto de duvidar se era real o que pensava ter acontecido.
Khalid parecia sonhar:
“Todos nós somos instrumentos do futuro, que precisa de glórias e de chacinas; exemplos do bem e do mal; de heróis, mas também de traidores. E é nessa qualidade que preciso de ti”. Depois, chamou os homens que estavam à porta e disse: “Espanquem este traidor, mas não o matem. Precisamos dele vivo, para que os cidadãos de Husabad tenham a quem apontar o dedo, com ódio libertador”.
Fica-se sem fôlego!
Já não sei que dizer mais. Continuem a deliciar-nos.
Obrigada.
agradeço o comentário e fico surpreendido, porque pensei que o conto era fraco e até hesitei em colocá-lo aqui. Há um problema de ritmo e o título não é este. enfim, pressas.
muito bom, para mim. não notei nenhum problema de ritmo e antes pelo contrário. e tem o que falta muitas vezes, intensidade dramática numa história em que não é difícil acreditar
"A mancha de luz dourada que os banhava desmaiou e desapareceu. O céu escureceu de novo, áspero, enquanto morria o crepúsculo. O vento acelerou e voltaram os balanços brutais."
Acabei de ler, obrigada,por este livro, foi um prazer.
Uma leitora.
Agradeço estes comentários