10.4.06

Trinta segundos

E ele a dar-lhe... Só então, distraído que estava com os portentos daquela deusa, ouvi finalmente o que Francisco me repetia. “O Anselmo morreu!”. Foi nesse instante que compreendi a informação, com a sensação absurda da notícia se enterrar no meu cérebro como se pesasse uma tonelada.
O Francisco dizia-me aquilo numa altura imprópria. Nos trinta segundos anteriores, enquanto ele se sentava na cadeira em frente, no meio da barafunda do café na alameda do centro comercial, eu distraíra-me a observar uma rapariga: ela tinha um decote fabuloso que revelava o busto perfeito; vestia shorts, as pernas eram esplendorosas, uma dela pendurada sobre a outra, o pé envolvido por um ténis branco a oscilar no vazio, em embalo tranquilo, como se estivesse a ouvir música. O cabelo negro escorria-lhe sobre os ombros nus. Por vezes, passeava o olhar pelo espaço em volta, talvez à espera de alguém. E eu pensei assim, com clareza sibilina: que não tenha um namorado, que não tenha um amante...
E, nesse instante, o Francisco sentou-se na cadeira vazia, na minha mesa, de costas para a rapariga. E disse: “Já sabes?”
Eu devo ter feito que sim com a cabeça, o meu olhar vigiava a gazela; O Francisco ficou pensativo, calado, parecia um filósofo. Pediu um sumo ao empregado e isso ouvi vagamente, por entre o ruído de fundo dos clientes do shopping, que faziam as compras de páscoa.
Depois, ouve uma espécie de turbilhão de acções simultâneas, ou assim pareciam na minha consciência. Um homem passou atrás de mim e gritou qualquer coisa em espanhol, falava para uma mulher gorda que vinha atrás e que resmungou em resposta; mas tinham falado tão alto que me virei por instinto; ainda fazia os cálculos sobre o que acontecera, vagueei de novo pela savana (um tipo alto parecia uma girafa e outro estava pendurado como um gorila); e reencontrei a gatinha, que pegara num livro de bolso e fingia estar atenta à leitura; nisto, juro, ela olhou para mim. Foi um contacto visual directo; devo ter sorrido, pois imagino que ela me sorriu também: O decote enlouquecia-me e a perfeição das pernas...
“O Anselmo, coitado, foi fulminante”, disse então o Francisco. E isto ouvi distintamente.
“O que se passa com o Anselmo?”
“Morreu! O Anselmo morreu!” E aquilo precipitou-se de repente na minha consciência, no exacto instante em que a rapariga em frente movia o cabelo para o lado com a ponta dos dedos da mão esquerda, num gesto próximo do perfeito.
Parecia que me caíra o mundo em cima. O Anselmo era o meu melhor amigo e davam-me aquela notícia no mesmo momento em que me apaixonava:
“Ataque cardíaco fulminante”, explicou o Francisco.
Tinham passado trinta segundos desde que o Francisco se sentara. Enquanto eu meditava no que ele dissera, a deusa guardou o livro de bolso e colocou a mala de senhora ao ombro. Depois, ergueu-se, ligeiramente inclinada, e o peito dela descaía também ligeiramente, mostrando-se na sua glória. Sorriu para mim e avançou por entre a multidão, talvez à espera que a seguisse, sem imaginar porventura que eu já só pensava na morte do meu melhor amigo.

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6 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Tantas vezes a morte a vida caminham lado a lado. É bom sinal. Isso chama-se Esperança. Gostei muito, Luis. Mais uma vez, muito humano.

2:23 da tarde  
Blogger Sol said...

Muito bonito sim...

2:33 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Por vezes é mesmo assim: a realidade esmaga o sonho.
Gostei muito.

6:18 da tarde  
Blogger luisnaves said...

obrigado pelos vossos comentários

8:01 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Luis, passo a explicar. Quando a morte de alguém nos arrasa e há um sinal de vida que nos chega nessa altura, como uma paixão, nasce uma esperança nova, uma luz, indicando que a dor vai passar e uma nova fase poderá surgir. É a chamada "luz ao fundo do túnel". Concordas?

9:36 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

não sei porquê mas bonito parece-me um pouco ofensivo......

11:06 da tarde  

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