É um sofá castanho. Está uma televisão ligada.
A casa pertence a uma família monoparental de uma classe média desafogada.
Está uma menina a dormir o corpo no sofá. Faz a sesta pela obrigatoriedade da idade.
A falta de dentes da frente dá-lhe um ar rabino que a faz ganhar pessoas sempre que lhe escapa um gargalhar:
tem cinco anos e ri sem preocupações.As crianças felizes têm gargalhadas destas: as crianças tristes riem aos soluços.
Ela dorme ali. Não me atrevo a despertá-la e posso adivinhar e partilhar o conteúdo do sonho:
sonha com a casa da avó.Uma casa de madeira antiga escondida das pessoas entre árvores.
Uma oliveira gigante rasgou a sala e fez-se mobília :
nunca ninguém entendeu a opção arquitectónica tomada
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não foi opção arquitectónica alguma: a árvore quis ser da casa, a casa deixou-se ser da árvore
a casa da avó com cheiro a lume acabado de nascer, onde ela pode andar livre e em cuecas no jardim
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sem vestido, sem tranças a apertaronde pode passar horas no baloiço tido e criado para si
-se a tua mãe vissea casa da avó dos olhos cinzentos- a única avó tida, única avó conhecida; a morrer num dia de Natal sem chuva.
Viu-a ser levada na ambulância de sirenes silenciosas, enrolada no seu cobertor amarelo. Espreitou-a com os seus dois olhos da janela, escondida
- a avó?da protecção do clã que lhe queria preservar a alma da certeza da morte.
Foi a matriarca em exercício que decidiu, meses depois, levá-la de forma continuada
-
como medicamento a tomarde tranças e vestido de Domingo, ao cemitério de Benfica dizer olá à avó morta
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Olá avóA mãe, deixava-se guiar por aquele corpinho de cinco anos roliço que num cemitério cheio de mortos a levava pontual à campa exacta:
e tantas eram as campas possíveis
- ali mãe, é aquelasem nunca a matriarca entender a forma sábia e serena
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sem confusão, sem dúvidas ou passos atráscomo ela guiava de forma certa. Talvez o cheiro do sangue morto, talvez o rasto desse sangue morto igual ao líquido vivo que lhe corria debaixo da pele:
ninguém saberá dizer.
Havia nesse cemitério, depois das 15 horas, uma conversa sagrada entre três fêmeas do mesmo clã:
uma fêmea morta enterrada, uma fêmea viva, uma fêmea a fazer-se.
A fêmea a fazer-se sentava-se no mármore branco-frio da campa da fêmea morta a dormir
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dói-me as pernas mãearranjando o vestido com roda para
Não o sujarNão amachucarNão estragar(os três Nãos da roupa de Domingo)
enquanto ouvia descontraidamente a conversa das duas. A conversa das duas sempre a fascinou.
A mãe a dizer à mãe morta a dormir debaixo do chão
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Sinto a sua falta,
mãeenquanto a fêmea pequenina atentava os dedos gordinhos nas pedrinhas beges que tapavam o ar à avó morta debaixo da terra
-
Olhe para mim, mãe, sou uma mulher de meia idade com três filhos e ainda preciso de si, mãe, ainda preciso de aqui vir vê-lapara depois perguntar à mãe orante:
- Tu não vais morrer, pois não?e ela continuava olhando a campa sem saber que lhe respondia
- um dia, pequena, um dia longe.dizendo para si
- Não, não a vou deixar como a mãe me deixou a mimcaiando os olhos de uma angústia de água:
-
porque é que os medicamentos para o coração foram encontrados escondidos no estrume do quintal, mãe?...explique-me? As conversas de domingo no cemitério de Benfica, duraram até um levantar de ossos doloroso que se fez com as três presentes: a morta , a viva, a que se estava a fazer
-
custaram a sua vida, mãe, a sua vida por uma caixa de medicamentos escondida no estrume.
e o grau daquela intimidade nunca seria esquecido por aquela mais pequena que se fazia ali, nos restos que lhe sobravam
daquilo.Um dia, um dia por favor explique-me porque deixou de os tomar.Hoje, apenas hoje, apetecia-me muito que se levantasse daí de baixo, que se erguesse hoje para me dar um abraço.