3.3.06

Se os olhos são o espelho da alma, será que mostram a alma ao contrário?

Alguns nunca saberão manejar uma metralhadora. Outros nasceram para isso.
Kabir tem 8 anos no momento da fotografia. É um pouco, ligeiramente, mais alto do que a sua AK-47. A arma está limpa e ele não. A coronha de madeira retráctil faria dela uma peça de colecção na parede de qualquer coronel reformado. Ele, Kabir, é soldado. Mais um raso entre os rasos. E orgulhoso de o ser, creio eu.

Digo que creio mas nunca o saberei. Nada na sua expressão revela o que quer que seja. A AK-47 é mais poderosa do que a minha Leica, sobrevivente a tantas guerras ou - como agora se usa - a tantos conflitos. No entanto, não é a arma que temo mas aqueles olhos. A expressão abísmica da morte nos olhos de um vivo, tornado golem ou zombie voodoo. Suponho, não posso fazer senão supor, que esses olhos ganhem uma luz negra no momento em que as vítimas tombam, mesmo que apenas por alguns segundos.

Kabir não gosta de mim, tem 8 anos e uma kalash na mão, ainda por cima destravada. Disponho de dois minutos para as últimas imagens do rolo e transmito-lhe isso mesmo com os dedos abertos num V de vitória. Depois disparo, viro-me e inicio o regresso pelo caminho de pó. A seguir, dispara ele.

Quando me viro, com a lentidão suspensa de um relâmpago, vejo que sorri num esgar que o olhar insiste em não acompanhar. A seu lado, um outro rapaz morto e uma outra AK-47. Salvou-me a vida mas nem por isso lhe agradeço. Limito-me a fixá-lo. E ele, com um dedo apenas, levanta-o num gesto de significado universal. Então - e só então - lhe digo obrigado.

14 Comments:

Blogger Maria Carvalhosa said...

Inspirado (todo ele)! Final absolutamente fabuloso.
Bjs.

3:07 da manhã  
Blogger Maria Carvalhosa said...

Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

3:07 da manhã  
Blogger Maria Carvalhosa said...

João, O comentário fui eu que apaguei.Sem querer, repeti o de cima.Enfim... nabices!... :)

3:12 da manhã  
Blogger Sol said...

Fogo!!!

10:59 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Muito forte. Muito bom.

12:18 da tarde  
Blogger Ricardo António Alves said...

O olhar é um grande tema. Bem apanhado. Gostaria que o final fosse menos abrupto: a reacção de Kabir é incongruente, para não dizer inexplicável... Abraço.

4:37 da tarde  
Blogger João Villalobos said...

É bem explicável! Com o fotógrafo morto, lá se ia o bilhete para a mediatização. E até um Kabir dá atenção a isso (é a tese do texto, pelo menos).

4:43 da tarde  
Blogger João Villalobos said...

Embora também pudesse não ter dado e não feito nada. Desta vez, simplesmente, foi assim...

4:44 da tarde  
Blogger L. Rodrigues said...

Um Kabir anseia por 15 minutos de fama? Ou apenas por agradar ao seu tenente?

4:47 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Não sei como é o olhar de uma criança que mata.Conheço outros olhares...de outras crianças, de muitas outras crianças. O que mata será criança? Não sei.
Stela

7:01 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Eu gostei. Todas essas atitudes e todos esses breves pensamentos que nos assaltam a mente sem que consiguemos repostar são brilhantes e tornam mais facil perceber o final...

Muita Inspiração tou a ver.

* * * * * *




Não resisti em comentar este.

7:03 da tarde  
Blogger Zeca said...

Neste sábado de invernia é com prazer que se lê textos de tamanha grandeza.
Por isso, carreguei com ele para o Plagiadíssimo.
Passa por lá e fica bem.

9:59 da manhã  
Blogger sisifo said...

Sei como são os olhos convexos de uma criança de oito anos. São olhos sérios como não mais serão na vida. Têm a seriedade que em adultos desprezarão. As suas brincadeiras são a sua vida e somos nós, de fora, que achamos que eles brincam. Talvez por isso os queiram como soldados. Talvez para soldado nunca se possa usar um adulto. Talvez para soldado não se possa usar alguém consciente da própria brincadeira.

2:21 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

O avesso da alma na crueldade da inocência ou na inocência da crueldade - espelhos.
Mais um excelente texto neste excelente blogue.
Obrigada.

2:39 da tarde  

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