2.3.06

Foi numa tarde destas

Rogério fazia doze horas por vezes catorze por dia ao volante do táxi. O alvará, comprara-o pelo preço equivalente a uma vivenda no Algueirão a uma mulher que trabalhava na passagem de nível de Carcavelos mas que - aqui entre nós que sabemos como estas coisas são - nem carta de condução tinha.
A tarde em que aconteceu o incidente era uma das últimas, antes do dia em que todo esse investimento seria finalmente amortizado, o lucro a partir daí investido apenas na educação dos três filhos e, em especial, na do seu varão Marco, estudante do segundo ano de medicina na douta Universidade de Coimbra.
Rogério tinha stress pós-traumático, o que significava que a adrenalina não lhe podia subir acima, digamos, do factor 30, ou isso desencadeava nele reacções semelhantes às daquela tarde em Benguela quando a guerra já tinha supostamente terminado mas, mesmo assim, por alguma razão alguém disparou em pleno mercado e depois outro e outro e quando terminaram havia centenas de corpos no chão, mulheres e crianças também, tantos que tiveram depois de queimar os pedaços com gasolina dentro de bidons.
Nessa tarde Rogério foi chamado para uma corrida ao Restelo e, quando chegou ao local, achou que ia ter problemas. Eles eram três, eram pretos - o que fazia de imediato subir-lhe a adrenalina até digamos o factor 29 e meio – e entraram rapidamente no táxi falando entre si uma língua que não reconhecia. Foi o que bastou.
Um deles, entretanto sentado a seu lado, estendeu-lhe um papel onde estava escrito Hotel Tivoli. Rogério, no entanto, leu uma outra coisa totalmente diferente na folha estendida. Tão diferente que, com a mão esquerda, retirou de debaixo do assento uma Walter de serviço que nunca registara e apontou-a ao surpreendido senegalês. Gritava até as cordas vocais lhe rebentarem como uma harpa tocada por um paquiderme ensandecido. Mas não se ouvia a si mesmo gritar nem deu por fazer o que fez a seguir.
De acordo com o psiquiatra que depôs mais tarde em tribunal, o almoço revivalista desse dia com os ex-camaradas da Companhia fizera-o recuar perigosamente até outro tempo. Um tempo terrível em que se faziam coisas terríveis que, senhor Juiz, penso que posso abster-me de descrever aqui, disse o psiquiatra. O juiz concordou mas nem por isso deixou de dar a sentença. O filho do senhor Rogério, esse, esteve ausente de todo o processo. Quem o conhece, diz que é hoje um médico óptimo com as crianças.

4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Que loucura! Adorei a frase "Gritava até as cordas vocais lhe rebentarem como uma harpa tocada por um paquiderme ensandecido."
Gostei imenso do texto. Adorei a forma como acabou. És fantástico nas últimas frases.

10:57 da manhã  
Blogger L. Rodrigues said...

Uma vez apanhei um táxi na zona de Linda a Velha, para Oeiras. O condutor falava sozinho, vociferando contra alguém a quem queria mal, e dava grandes pancadas com a mão no volante Além disso andava muito depressa, descendo até à marginal com o acelerador a fundo...
Naquele caso, senti que a arma era o carro. Fui sempre muito caladinho.

12:23 da tarde  
Blogger Paulo Cunha Porto said...

Apesar de a experiência demonstrar que as armas por excelência do taxista são a língua e a buzina, o episódio até era credível. O causídico que pleiteou o caso é que entregou, está visto, a tarefa a um estagiário. Informações facilmente confirmáveis asseguram-nos de que o Sr. Rogério, antes de Benguela, cumprira comissão de serviço na Guiné. Lá aprendera algo do dialecto que se falava, de um lado e do outro, na fronteira com o Senegal. Percebera, assim, que os passageiros planeavam o assassínio de uma conhecida figura internacional, candidata ao Prémio Nobel da Paz. Agira, portanto, em legítima defesa de terceiro.
Mais, informações particulares dizem-nos que o Filho do Sr. Rogério foi impedido de comparecer no tribunal pela namorada e pelo Irmão desta, que temiam que fizesse uma loucura. Que o seu desvelo para com a generalidade das crianças coexiste com uma raiva surda contra tudo o que é senegalês e o sentimento da injustiça de não ter visto o Pai tratado como um Herói. E que essa dedicação se transforma, quando lhe é presente o filho de algum imigrado do Senegal, a quem, sem justificação médica, ministra injecções de arsénico.
O mundo nem sempre é o que parece. Na mesma pessoa, nuns casos mais negro, noutros, muito mais estimável.
Se a versão incomodar demais, apaga o comentário.
Ab.

3:40 da tarde  
Blogger João Villalobos said...

Não incomoda nada. Mas já que escreves de forma tão criativa, por que é que não crias um blogue. Ou quiçá dois ;)
hihihihi (protected by copyright laws)

3:47 da tarde  

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