1.5.07

Territórios de Caça (V)


5. Fárkas regressou ontem do hospital. Veio imediatamente a minha casa, para levar o dossier. Ouvi alguém a bater na janela da porta do apartamento onde vivo (é, na realidade, a porta da cozinha) e fiquei surpreendido por ver o velho ali à minha frente, com ar bastante saudável. Explicou que tinha recebido alta e que estava recuperado. Convidei-o a entrar e a tomar chá (que aceitou).
Ficámos algum tempo sentados na mesa da cozinha, que dá para duas pessoas se sentarem, enquanto bebíamos o chá que preparei. Conversámos bastante.
Ele contou-me tudo sobre os dez dias passados no hospital, que tinha sido incómodo a princípio, mas o tratamento acabara por ser eficaz, óptimo, acrescentou; "privilégios dos pensionistas", disse; e as enfermeiras eram simpáticas. Riu-se deste último comentário, um riso brejeiro que não condizia com a sua figura espartana. Mas, enfim, reflecti, enquanto o ouvia: que sabia eu dele?
Naquela conversa, onde eu apenas disse trivialidades, comecei a observá-lo com maior pormenor. Parecia esquivar-se, por vezes, a dar a sua verdadeira opinião sobre as coisas (sim, era isso, fizera três comentários sobre os funcionários do hospital e nenhum deles coincidia, como se o discurso servisse para lançar interrogações, numa busca lateral do ponto nuclear que pretendia descrever). Mas talvez estas minhas impressões fossem tolas. Como podia eu tirar tais conclusões de meia dúzia de palavras ditas numa conversa banal, enquanto se tomava chá?
Apesar de tudo, falámos de outras coisas: ele mostrou curiosidade em relação à imagem de um calendário que estava pendurado na parede:
"Não sei se já reparaste, Lajos, que este calendário é de Outubro. Espero que não estejas assim tão fora do teu tempo".
"Não é meu. Só vivo aqui há um mês".
"Eu sei, eu sei, estava a brincar..."
"Deve ser dos estudantes que viveram neste apartamento, no ano passado".
Ainda gaguejei a explicação, mas ficara muito surpreendido com aquele "eu sei". Além disso, tratara-me por Lajos e por tu. Não pelo meu nome de família, Kormányos, ou por você, como teria sido normal. Nem pensei em familiaridades, esclarecer o "eu sei" ou responder da mesma forma e tratá-lo por István, por exemplo; continuei a usar a formulação respeitosa. Fárkas tinha idade para ser meu pai! Mas também não fiz alusão à forma de tratamento que ele utilizara. Limitei-me a procurar o dossier, que lhe entreguei.
"Espero que o tenhas visto bem por dentro", disse ele, de repente, a mostrar-me o dossier.
Devo ter ficado de todas as cores. Fui forçado a balbuciar uma desculpa, que alguns dos objectos tinham caído e, de facto, tinha aberto a pasta para colocar lá dentro o que se espalhara no chão.
Ele sorriu muito, quase uma gargalhada: "Fizeste bem".
A partir deste ponto, não tive coragem para lhe pedir uma explicação sobre aquilo que vira no interior do dossier. Só podia esperar que ele explicasse. Fárkas deu-me um aperto de mão. Mudara de expressão:
"Obrigado por me teres guardado os documentos", disse, finalmente, com ar solene. "Vamos perdendo a memória e estes papéis são referências que deixamos no caminho, para não nos perdermos".
Queria perguntar-lhe se sofrera muito, ao ser prisioneiro, mas fiquei silencioso, a tentar perceber na sua cara o que ele estava a pensar. E não conseguia ler nada.
"Há ali mensagens...", disse eu.
"Sinais, pistas. Estou a ver que és um bom caçador". Fárkas nem esperou que eu negasse, prosseguiu logo: "Para um bom caçador, o importante não é o momento de capturar a presa, mas a circunstância do cerco, o conhecimento do território onde a vítima se move, a aproximação e a armadilha". Mudou outra vez de expressão, parecia de repente muito feliz: "Ah! Mas dou por mim a filosofar em demasia. O que verdadeiramente interessa é que ainda temos muita vida à nossa frente!"
"Mas, István, eu nunca cacei na vida!" A minha própria frase surpreendeu-me. Tratara-o pelo primeiro nome.
"Isto é metafórico! És um caçador de histórias!"
Depois de fazer esta afirmação, Fárkas largou uma risada, despediu-se e saiu.
Nessa noite, não me saíam da cabeça aqueles farrapos de destinos esquecidos que pressentira no dossier. Tive uma terrível insónia. Pensei em territórios de caça, circunstâncias de vida, em qual das três mulheres seria Vera, a que suscitara a palavra veritas. E, depois de adormecer, sonhei com lobos*.

*(nota do tradutor: esta referência é de difícil tradução, pois Fárkas, em húngaro, significa Lobo. Kormányos usa o plural, mas para um leitor do texto original a ligação entre o nome e sonho é imediatamente óbvia)

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2 Comments:

Blogger luisnaves said...

obrigado pelo comentário.

5:00 da tarde  
Blogger CPrice said...

obrigada eu pelo verdadeiro prazer que me dá de acompanhar esta estória :)

5:25 da tarde  

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