8.5.07

Territórios de Caça (X)


10. Estava inebriado pelo excesso e parecia-me que não havia mais nada na minha vida. A sensação era de vazio, apesar de ter irrompido aquela estrela pelo meu espaço dentro. O que é excessivo na existência torna-nos insaciáveis. Agora, Csilla era tudo o que me importava. Ela passara a noite na minha casa e saíra de manhã; prometera voltar nessa mesma tarde e eu sentia que não tinha mais coragem para esperar o que parecia ser a própria eternidade. Quando se despedira de mim, ela parecera uma gata a ronronar, a enrolar-se à minha volta, a desfazer-se em promessas que me deixavam louco. Na solidão da casa, fiquei atordoado de desejo, a imaginar mil e um pormenores sobre a sua própria vida, que queria dominar depressa, impaciente com essa insegura sensação de não a conhecer de todo e o perigo pressentido (que um diabinho atrás da orelha me murmurava) de não gostar do que viria um dia a conhecer.
Eram já dez horas, quando decidi ir passear pela cidade. As pessoas estavam nos seus escritórios, ou nos seus empregos. Por isso, caminhei por ruas quase vazias, cuja quietude apenas era perturbada pela passagem do ocasional automóvel, alguns reformados, crianças de escola. Enquanto caminhava, na aparente serenidade, as minhas ideias atropelavam-se, cavalgando umas em cima das outras.
Quando regressei à rua Gogol, Fárkas estava a sair pelo portão do prédio. Trazia um chapéu à maneira antiga, parecia bem vestido. Cumprimentou-me com alegria, de braços abertos, afirmou que eu o tinha salvo por duas vezes. Um verdadeiro herói, disse ele, engrossando esta última palavra, que pronunciava com evidente prazer. Depois, pediu-me para o acompanhar e não me esquivei, pois, no fundo, precisava da companhia de alguém, para poder reflectir sobre a desordem que ia no meu espírito.
Apesar do sol brilhar, a manhã estava fresca. Enquanto caminhávamos, Fárkas explicou que iria visitar um padre seu amigo:
"Ficarás a conhecê-lo também. Chama-se János Benedek e, na semana passada, foi escolhido para ser o bispo da nossa diocese. Vou cumprimentá-lo pela nomeação".
Esperei que o meu vizinho fizesse alguma pergunta sobre Csilla, mas ele permaneceu silencioso e sorridente. Não parecia ter qualquer curiosidade em relação ao que sucedera depois de fechar a porta do seu apartamento.
Ainda estávamos longe da catedral e perguntei a Fárkas sobre o seu irritado visitante da véspera:
"O Petrudján foi meu doente", disse ele, para minha surpresa. "Um megalómano".
"Mas o István é médico?"
Ele confirmou. Contou-me que tinha sido psiquiatra noutra cidade, agora estava reformado, e que tratara numerosos casos, sobretudo de alcoólicos e doentes de nervos. Usou mesmo a palavra alemã:
"Salvaste-me a vida pela segunda vez", prosseguiu, "o Petrudján é um estouvado e pode tornar-se violento em certas ocasiões".
"É impressionante como ele se parece com o Charles Aznavour", disse eu, aliviado com a explicação de Fárkas.
"Que reste-t-il de nos amours, que reste-t-il de ces beaux jours"*, cantou Fárkas, numa voz de barítono.
"Essa é do Charles Trenet, parece-me".
Rimos os dois. E aquela proximidade tornou-me ainda mais curioso em relação ao meu vizinho e não resisti a fazer-lhe uma pergunta que poderia desvendar novos fragmentos do seu passado:
"Quem era a mulher da fotografia, a Vera?"
Ele parou. Olhou para mim. Percebi, aliviado, que não o melindrara. Pelo contrário, Fárkas ganhara uma expressão tranquila e sonhadora:
"Viste a fotografia dela no dossier que te pedi para guardares?" perguntou.
Confessei que vira a imagem e o que estava escrito no verso.
"A Vera era uma colega de escola. Andámos na mesma faculdade. Ela saiu do país em 56. Sabes, Lajos, na minha geração tudo se explica com 56: os que escolheram a liberdade, os que optaram pelo compromisso, os que nunca se adaptaram, os que nunca se arrependeram. Ela escolheu a liberdade. Sei que a Vera acabou o curso de medicina no Canadá. Faleceu em 76, num estúpido acidente. E o que está escrito no verso da fotografia era ‘In Vino Veritas’, a conhecida frase latina, que atribui ao vinho a propriedade de desatar as línguas".
Tínhamos chegado à catedral católica. Um edifício imponente, que domina o centro da nossa cidade.
Fárkas tirou o chapéu e acompanhei-o no interior do templo. A luz solar incidia nos vitrais, realçando a sua coloração etérea. Cheirava a um misto de pedra antiga e humidade entranhada, mas a atmosfera escura e espessa tinha uma espécie de suavidade. O altar faustoso, um friso de velas acesas, cujo cheiro se dissipava pela vastidão da nave. E, ao fundo, um homem vestido de negro, tão austero como as estátuas religiosas: um padre, em cuja direcção Fárkas avançou.
* nota do tradutor: em francês no original húngaro

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5 Comments:

Anonymous Anónimo said...

e depois e depois....maria joão

9:47 da manhã  
Blogger CPrice said...

tentativa superada Sr. LN .. venho de facto diariamente acompanhar a brilhante novela.
Parabéns :)

11:45 da manhã  
Blogger Luis Naves said...

agradeço muito o vosso interesse por esta história e o incentivo que me estão a dar para continuar a publicá-la nesta forma. obrigado também à autora de once in a while pelo link

12:06 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Caro Luis,continuo nesta saga bem agradavel.
Sem ofensa!Aonde param os outros colaboradores?

Um abraço

ERGELA

7:55 da manhã  
Blogger Luis Naves said...

não ofende. este é um espaço de liberdade onde cada um publica quando quer. o problema desta novela é que monopoliza o espaço...

8:41 da manhã  

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