16.5.07

Territórios de Caça (XV)




15. O texto estava escrito à mão, com a mesma letra do anterior. Estava acompanhado da fotografia de um homem novo. Tinha um título, "memória", com a palavra "conto" à frente (Fárkas dissera que aquilo não era literatura, mas tinha esta palavra escrita, numa letra bem desenhada):
«Um saco está cheio, por exemplo, com areia. De repente, por um qualquer passe de magia, essa areia vaporiza-se, desaparece de forma instantânea. O saco perde o seu interior e, subitamente imaterial, deixa-se cair por efeito da gravidade, flácido e lento. A seda pode escorrer da mesma maneira, parecendo uma torrente de coisa nenhuma.
Foi assim que tombou o corpo, como se tivesse ficado subitamente esvaziado, ou como se a vida fosse um tecido de seda, em queda no universo. Nem fez nenhum som. Isso surpreendeu-me muito, pois esperava que o colapso daquela existência, a sua passagem da matéria para o nada, fizesse algum tipo de barulho dramático.
Enfim, estas duas impressões (a de um corpo a tombar como se fosse um tecido de seda) e a ausência de um ruído apropriado, resumem tudo o que me lembro do meu primeiro assassinato.
Claro que me recordo também do olhar absolutamente pérfido de Horváth, que estava bêbado e já não media os seus gestos. Tirou a pistola, passou-a para a minha mão e disse: ‘Não consigo acertar no estafermo, parece que se mexe muito. Mata-o tu, é uma ordem’.
Não tremi, nem nada. Pelo contrário, fiquei imperturbado. Mas, ao pegar na pistola, senti nas minhas mãos o que sentira quase vinte anos antes. Lembro-me, foi ainda antes da guerra, num verão qualquer, talvez em 38...
...Devia ter uns seis anos e peguei nas pernas de trás de um coelho da minha avó; fiz balançar o coelho, como se fosse um chicote e lancei a cabeça do bicho contra a esquina de um pilar de pedra que segurava a casa...
...Horváth falhara o primeiro tiro. Eu devia estar ali apenas para assistir ao fuzilamento e confirmar o óbito, certificar todos os procedimentos. Tentei convencê-lo a não matar o prisioneiro, mas senti a determinação maldosa no seu olhar, que não admitia contradições. O primeiro tiro que ele disparou acertou no alvo, mas o ferimento não era mortal. O uniforme de Horváth estava manchado de sangue, havia uma poça de sangue no chão, a bala entrara no pescoço (não percebia como podia ter falhado tanto); o condenado estrebuchava, numa agonia horrível. Horváth estava a entrar num nevoeiro de gestos perdidos, sem saber o que devia fazer a seguir, bebera demasiado e não conseguia dar o tiro de misericórdia...
...O coelho estava vivo e havia força nos seus músculos, uma vitalidade que pressentia com as minhas mãos de criança. Mas quando lhe parti o pescoço, foi como se uma mola se quebrasse num brinquedo e tudo ficou flácido, uma gelatina sem ânimo. O coelho deixou de abanar...
...Por isso, peguei na pistola e encurtei o sofrimento do homem. Horváth riu-se: ‘Perdeste a virgindade’, disse o bruto. Observei com nitidez que ele tinha as calças do uniforme cheias de sangue e as botas altas manchadas. O uniforme do comandante estava uma vergonha. Apeteceu-me insultá-lo e dar murros naquele focinho de porco. Podia ter recusado a pistola: dizer-lhe que era médico, que não era um facínora. Mas preferi ficar calado, pensei no sofrimento do prisioneiro e fiz-lhe o favor de o poupar a minutos, talvez horas, de uma morte lenta. Depois, pensei, com surpresa infinita, que as mãos não me tinham tremido. E lembrei-me...
...Tinha seis anos e senti uma alegria imensa ao matar o coelho. A cabeça pendia no ar, um pouco grotesca, pareceu-me. E comecei a rir de forma tão histérica, que quando me descobriram, aos gritos, tiveram de me dar estalos, para que me calasse...
...Horváth fizera de propósito, para me humilhar, porque pensara que eu não mataria o homem. Mas havia uma razão ainda mais forte para estar irritado com aquela besta: o facto, tão simples e transparente, de ter adorado premir o gatilho. A pistola estalara: o barulho foi um pouco mais seco do que eu estava à espera e o coice um pouco mais forte; sobretudo, fascinou-me ver o crânio a explodir ao impacto da bala; e o que me surpreendeu foi simplesmente o corpo a tombar para o lado, como se fosse um véu de seda a cair num chão encerado, e a ausência de ruído depois do tiro. E fui inundado por uma sensação de poder e de prazer, a mistura exacta dos dois.
Nessa noite, Horváth continuou a beber, mas foi apenas o excesso que o impediu de matar outros prisioneiros. Havia um medo indizível a pulsar na noite, nas camaratas onde vidas precárias se agitavam, como se fossem coelhos paralisados. Eu não consegui beber uma gota. Estava demasiado lúcido. Procurei o ficheiro onde constava o nome do homem que eu matara e li todos os pormenores da sua vida, que era bastante banal. Achei estranho que todos aqueles factos sem nada de especial, compilados com tanto cuidado pela polícia, convergissem para um único ponto da história onde me encontrava eu próprio, de pistola em punho, à espera. Eu, imóvel, aguardando a chegada de uma vida vulgar que avançava para aquele ponto, exclusivamente para aquele ponto e não para um outro qualquer; pois essa vida, pensei, servira apenas para preencher a necessidade da existência de um encontro, no espaço e no tempo, que nenhum de nós previra.
Sei agora que os corpos celestes não se movem em órbitas previsíveis, mas num incerto turbilhão feito de atracções e repulsas, numa sopa de caos, até ao triunfante momento, o solitário segundo, inevitável desde o início dos tempos, em que cruzam o seu percurso com aquilo, tudo ou nada, que esteve uma eternidade à espera».

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7 Comments:

Blogger CPrice said...

forte ..

8:32 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Fantástico, brutal, cáustico, agarrei as palavras e incorporei-as...um prazer maiúsculo.
Obrigada
Maria joão

10:21 da manhã  
Blogger Luis Naves said...

agradeço muito estes comentários...

3:41 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Caro Luis,por acaso, e só acaso,nunca pensou publicar estes contos?

Um abraço

ERGELA

5:01 da tarde  
Blogger Luis Naves said...

tenho alguns contos para publicação, alguns escritos a partir de esboços que fabriquei nesta oficina. o caso deste texto é mais complicado, pois os editores não apreciam a dimensão de novela curta. mas é cedo. de qualquer forma, para publicar, teria de alterar muitos defeitos que ficaram. no blogue, a escrita é um pouco mais apressada do que devia ser.

7:05 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Está excelente, Luís, também acho que merec publicação.

7:53 da tarde  
Blogger Luis Naves said...

obrigado, sofia

8:46 da manhã  

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