2.5.07

Territórios de Caça (VI)

6. Sentado nesta cadeira, ouço os ruídos da rua Gogol. Vivo neste apartamento há um mês. Devia pagar a renda amanhã, mas não me resta dinheiro. A casa é pequena e tem um pé-direito enorme, pois resulta de décadas de sucessivas divisões. Na fachada, ainda existe uma pequena placa enferrujada, com a data de construção: 1906. Esse foi um ano de grande renovação da nossa cidade.
O prédio ainda é imponente, apesar da arquitectura banal. Tem quatro pisos e janelas viradas para sul. Entra-se por um portão largo, que dá para um pátio onde cabia uma caleche elegante. Depois, virada para o outro lado, está a escadaria, sóbria, mas sólida. E, enfim, os apartamentos, que deviam ser enormes quando foram construídos. Moro no terceiro andar, num apartamento renovado a partir de metade de uma cozinha um quarto de criada e parte de uma sala, com duas janelas grandes. (Fárkas mora no andar de cima, numa casa ainda mais pequena).
A rua Gogol deve ser das mais agradáveis da nossa cidade: tem fileiras de faias pujantes, muitas delas plantadas no início do século. O bairro, fisicamente, não sofreu durante a guerra. Durante o regime comunista, as melhores casas foram nacionalizadas, para alojar trabalhadores. No fim do regime, foram vendidos, a bons preços. Os prédios estão preservados e só alguns se encontram em mau estado, sem obras há décadas.
Enfim, aqui não houve bombardeamentos de guerra, mas ainda se podem ver as cicatrizes do século. Este era o gueto judeu e o que se observa é a ausência dos antigos habitantes. Como se alguém tivesse cortado um membro a um corpo envelhecido.
No início do século, a zona era de classe média. Os judeus que viviam neste bairro foram um dia agrupados e ceifados. Coisa súbita, como um ataque cardíaco.
Quando o prédio foi construído, no tempo da monarquia, os habitantes destas casas estavam bem instalados na vida. Em segurança, como escreveu Stefan Zweig, no seu Mundo de Ontem. Depois, veio a loucura. Olho para estas paredes e quase percebo a tragédia dos que foram forçados a partir, arrastados para a morte. Estas paredes estão repletas de sussurros de fantasmas. Risos, choro.
Mas divago. O apartamento onde vivo não é meu. O aluguer foi um favor de um amigo, a quem não poderei pagar. Ele costuma alugar a estudantes, mas abriu uma excepção. Eu não tinha melhor lugar para onde ir, depois da minha mulher me mandar embora. A Sara diz que quer pensar sobre o nosso futuro, que não estamos separados, nem nada, mas não acredito que a nossa vida volte a ser o que era. E pensar que vim para esta cidade por causa dela!
Neste apartamento entra-se pela cozinha, o que resulta das sucessivas divisões sofridas ao longo do tempo. Há poucos móveis.
Sara foi firme em relação ao apartamento onde vivemos durante seis anos: é meu, insistiu; disse-o várias vezes. Nunca resisti à inevitabilidade do destino, mas ela repetia a ideia, como se tivesse má consciência. Pediu-me para procurar um sítio onde pudesse dormir e que a deixasse sozinha, com a sua infelicidade. Quando se sentiu desesperada, afirmou algo que me magoou muito (e que ainda não me sinto com coragem para contar).
Levei comigo duas malas e um saco de plástico com dez livros. Fiquei com o carro, um volkswagen em segunda mão. Lajos, tens de me dar espaço para pensar no futuro, justificou ela. E, depois, disse aquilo. Ainda estou ofendido. Não a vejo há um mês. Nem fui à nossa casa. Aliás, já não é minha.
Quando nos encontrarmos, sei que ela vai falar em separação definitiva e tenciono surpreendê-la, não resistindo à ideia. Não será preciso divórcio, porque nunca casámos.
Eu era um peso na vida de Sara. Secretamente, ela desprezava-me, ou pior, lamentava-me: Lajos, tens de ganhar mais dinheiro, o que era a maneira suave dela dizer que sou um inútil, com aquele trabalho irrelevante de escrever num jornal de província e tentar alinhavar uns contos que não consigo vender a nenhuma revista literária. Uma vez respondi-lhe. Foi uma espécie de desabafo: se ao menos ainda estivesse em Budapeste, se ao menos não tivesse vindo contigo para esta cidade adormecida, disse eu. Ela ficou muito magoada. No fundo, achas que sou uma provinciana, respondeu-me, zangada. E pensei que não era nada assim, que eu dissera aquilo por saber que ela me despreza, à maneira insegura das mulheres. Tem desdém pelo meu insucesso, porque vivemos numa nova sociedade, onde ter dinheiro é tudo o que importa. És um desadaptado, Lajos, disse a Sara, numa das suas afirmações mais lógicas. Tens razão, não levo nada a sério, respondi, a ofendê-la de novo sem querer, pois julgou que eu me referia aos seus problemas.
Um dia, esperei pelo final das aulas (Sara ensina química num liceu da cidade). Ao fim de algum tempo, ela saiu mas, no derradeiro instante, escondi-me numa sombra. Escondi-me para não estragar a felicidade que lhe vi no rosto. Sim, percebi que seria embaraçoso para ela eu aparecer-lhe assim à frente, como alguém da família que rejeitou.

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4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Caro Luis,como já escrevi no Corta continuo a ler estes contos com muita avidez.Parabens.


ERGELA

7:41 da manhã  
Blogger Luis Naves said...

obrigado, ergela. desta vez, é um texto relativamente extenso e espero que os leitores tenham mais paciência. E, em breve, o ritmo de publicação terá de diminuir, para dar visibilidade aos textos dos restantes autores deste blogue

10:43 da manhã  
Blogger Zé Gomes said...

Parabéns pelos vossos "prazeres" que partilham connosco. Vou voltar com mais tempo para ler com mais atenção.

9:34 da manhã  
Blogger luisnaves said...

obrigado pela visita e volte sempre

9:54 da manhã  

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