14.5.07

Territórios de Caça (XIII)


13. Tal como prometera, eu e Csilla visitámos nessa noite o meu vizinho István Fárkas, depois de jantarmos qualquer coisa improvisada. Levámos bolos que fui comprar de propósito. Deviam ser nove horas quando chegámos. Era bastante tarde, pelo que não pretendia ficar muito tempo.
De início, estranhei o nosso comportamento meio embaraçoso, cheio de cerimónias: nem aquela parecia a casa de Fárkas, nem eu me portava como costumo fazer em visitas sociais; falei com cuidado, para não melindrar o anfitrião, evitando entrar em temas de zonas cinzentas. No fundo, compreendi que mal conhecia aquelas duas pessoas. Enfim, também estranhei a atitude de Csilla, que em vez de estar em casa de alguém que era amigo da família desde a infância dela, mais se comportava como a minha namoradinha, segurando-me a mão como se fosse uma adolescente; e não sei se com aquele gesto de melodrama de bairro queria impressionar o velho ou impressionar-me apenas a mim.
Conversámos um pouco, sobre banalidades, até que nos sentámos à mesa: havia uma luz forte no tecto, que iluminava directamente o tampo; o resto do apartamento estava silencioso e escurecido; o gato dormia no cobertor amarrotado que cobria o sofá. A princípio, houve um silêncio solene, a ponto de podermos perceber a tranquilidade de todo o prédio. No fundo, sabíamos que ia acontecer qualquer coisa e que seria revelado o motivo daquele convite.
Fárkas serviu palinka e obrigou-me a beber duas porções. E encheu-me o copo de novo. Csilla também bebera por duas vezes e agora começava a rir-se muito, por tudo e por nada. O riso dela era irritante, notei, embora a aguardente tivesse sobre mim o efeito adicional de aumentar a excitação que sentia, ao imaginar o corpo despido da minha namorada.
Foi nessa altura que Fárkas retirou dois maços de papéis de uma gaveta. Um deles era o dossier que eu próprio guardara em minha casa. Mas o meu vizinho segurava outro pacote e disse, numa voz baixa:
"Esta é a minha memória. São coisas que fui escrevendo ao longo da vida. Fragmentos, mais do que tudo. Cartas para um leitor futuro. Gostava que os lesses, pois contam uma história, e tu és um caçador de histórias".
Não sei porquê, a única preocupação que me ocorreu foi o mistério de ver novos documentos e de nada saber sobre eles. Onde tinham ficado, enquanto Fárkas estivera no hospital? Estranhamente, foi isto que lhe perguntei. Ele observou-me, espantado, mas respondeu:
"Ficaram em casa da mãe da Csilla, naturalmente! Estavam lá, bem guardados!". Olhou para a rapariga e, com um olhar terno acrescentou: "A minha menina é que os trouxe, anteontem".
O sorriso beato da ‘minha menina’ revelou-me o grau de cumplicidade que existia entre os dois. Confundido, sem saber o que pensar daquilo tudo, peguei no novo maço de folhas que Fárkas me estendera e que prometi ler.
Bebera a minha terceira palinka, mas o meu vizinho encheu-me de novo o copo, e engoli aquela nova porção, não pelo prazer que me dava beber a aguardente, mas pela suave tontura que começava a sentir:
"István, diga-me, acabe com estes mistérios: você esteve preso durante o antigo regime..."
O velho fez uma pausa. Reflectiu um pouco naquela minha pergunta, feita em tom de afirmação:
"Conheci bem o regime e as suas prisões. É por isso que preciso que leias tudo o que escrevi. Isto é a verdade, não é literatura". Com a ponta do dedo dava ênfase à frase, batendo na superfície do dossier.
Aceitei, finalmente. Abri a pasta, vi que não havia poucos documentos, embora parecessem mais, pois estavam misturados, dispersos. Havia folhas soltas, manuscritas com uma letra miudinha; papéis de cartão, com desenhos; fotografias, pequenos poemas.
"Não terás de ler muito! Depressa entenderás!" suplicou Fárkas.
"Porquê eu?" perguntei.
"Digo-te amanhã!", prometeu o velho.
Era tarde e estava tudo dito. Saímos da casa dele. Regressámos ao meu apartamento.
No silêncio escuro da minha casa, segurei Csilla, queria beijá-la, mas ela esquivou-se. "Estou com a coisinha", disse ela. Foi a expressão que usou, a ‘coisinha’.
Csilla acendeu a luz da minha secretária de trabalho. Colocou sobre ela o dossier de Fárkas e ordenou:
"Lê! Eu vou-me deitar!"
Obedeci. Sentia ainda uma vaga tontura, mas bastou-me ler um dos papéis para perder essa sensação de irrealidade, para me esquecer do embalo agradável e protector da ligeira embriaguez que me provocara a palinka.

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2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

E depois...vamos despacha-te, não me deixes em stand by… :-)
maria joão

1:03 da tarde  
Blogger Luis Naves said...

agradeço os comentários. segue dentro de momentos...

3:49 da tarde  

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