4.5.07

Territórios de Caça (VII)


7. Esta manhã, fui ao mercado. Restavam-me sete mil forint, o que só dava para fazer umas compras simples.
O mercado fica numa praça próxima da rua Gogol, num cruzamento de duas grandes avenidas, onde convergem trabalhadores e transportes públicos. Como já adivinharam, a nossa cidade não é demasiado grande: trespassada por um rio contido em margens altas e cimentadas (houve uma catastrófica cheia em meados do século XIX e fizeram obras hidráulicas, poderosos diques e mudanças de curso do rio a montante). A cidade tem três pontes, uma universidade, os habituais bairros de classe média, que se estendem por quilómetros de casas baixas, e os bairros cinzentos de painel, para os pobres (prédios todos iguais, pré-fabricados, de má construção).No centro, herança da monarquia, o grande jardim, uma pomposa sede de câmara municipal e os luxuosos correios. Há ainda escolas, igrejas para três religiões, cinemas, restaurantes à beira rio, uma casa de ópera com filarmónica, a biblioteca, vários hospitais e parques de certa dimensão, onde é agradável passear. Ao todo, umas trezentas mil almas. Eu vivo na zona mais antiga, no centro, nos tais prédios da monarquia, de paredes grossas.
Mas regressemos ao mercado. Saí cedo. Levava um pequeno saco de pano e seguia meio distraído, enfeitiçado pelo bulício e a confusão, a simples circulação de tanta gente, os cheiros e ruídos, as cores garridas do sol oblíquo a iluminar as bancas cheias de produtos.
Ainda não me decidira a comprar e avançava no meio da multidão quando, de súbito, deparei com Sara. Quase chocámos. O encontro foi de tal forma imprevisto, que não podíamos fugir um ao outro.
Ela sorriu, foi amável. Cumprimentámo-nos com um beijo na face e quis saber como eu estava. Eu respondi que andava bem e devolvi a pergunta. As pessoas continuavam a circular à nossa volta e havia muito barulho, o que nos obrigava a falar alto, para nos ouvirmos na balbúrdia. Ela tinha o cabelo ruivo mais comprido e emagrecera. O cabelo brilhava intensamente à luz acobreada do sol. Os olhos azuis, geralmente límpidos e aquáticos, estavam congestionados (chorara nessa manhã). Sara trazia um saco com compras, que me mostrou, apontando para uma velhota, mais ao fundo: olha, Lajos, aquela mulher tem os melhores legumes, disse ela. Tens de ir lá.
Mas falara com tal melancolia, com um sorriso tão triste e falso! Pensei nesse mesmo instante que sempre fora assim, amargurada e silenciosa. Quando nos conhecemos, em Budapeste, eu tinha sonhos de ser escritor e ela ficou talvez fascinada por essas minhas ambições; e um escritor tanto pode escrever na capital como numa pequena cidade de província; por isso, segui-a para a cidade onde moravam os pais dela e onde tinha um emprego de professora. Tal como eu, estava no seu segundo casamento; saíra de uma relação turbulenta, que a deixara talvez mais prudente com a vida e menos iludida. A família não ajudou: os pais não gostavam de mim, diziam-lhe nas minhas costas que vivia com um inútil. Dali, nada sairá de bom, sentenciava o pai, que trabalhara numa grande fábrica até à reforma antecipada (nem a tentaram modernizar: despediram toda a gente e arrasaram tudo; as ruínas da fábrica ainda estão no mesmo sítio; ocupam um espaço enorme, que parece ter sido bombardeado). E o pior eram as conversas políticas: o pai de Sara tinha a nostalgia do antigo regime e não se conformava com o novo. Irritava-se quando discutia comigo. Agora temos liberdade, dizes tu? Que bela liberdade é esta de já não servir para nada aos sessenta anos!
Eu e a Sara nunca casámos e ela não quis ter filhos. Como vamos alimentá-los, dar-lhes um futuro, pagar-lhes os estudos, perguntava ela. Se ao menos ganhasses mais, se arranjasses um emprego de informático...
Ao ver de novo aquele corpo magro que tanto amara e o cabelo ondulado, vermelho e rebelde, lembrei-me de como Sara queria que eu deixasse de sonhar. Vi o meu saco vazio, o dela cheio. Sugeri: tens aí muito peso. Ajudo-te a levar o saco até à paragem do trólei.
Nesse momento, ainda pensei que talvez fosse possível recomeçarmos tudo. Levaria o saco até casa dela!
Temos de falar sobre a nossa vida, disse eu. Ela virou-se para mim, olhou-me muito intensamente, numa tristeza infinita. Está tudo acabado, Lajos, respondeu ela. Primeiro, hesitei, algo desapontado; depois, concordei: sim, tens razão, magoaste-me muito. O que disse era a pura verdade, explicou ela. Uma verdade, talvez, que nunca se confessa a nenhum homem sem ferir o seu orgulho. E Sara (aqueles olhos, aqueles olhos!) deu a estocada final do duelo: só pensas no teu orgulho, o que sempre tiveste em excesso.
Sara subiu para o trólei, eu disse-lhe adeus, ela respondeu com um aceno pensativo e alheado.
E, então, reparei que havia várias pessoas que me olhavam: uma idosa gorda; um rocker com penteado de índio; um cigano baixinho; um homem de bigodes. Todos eles me observavam, a atenção cravada nos meus gestos, como se quisessem desvendar os meus pensamentos.
Corri para casa, enervado. E, ao chegar, havia uma carta. A Vida e Literatura comprara-me um conto: incluía um cheque de 30 mil forints como pagamento. Agora, já podia pagar a renda! E queriam mais contos e novelas, se os tivesse, mas pediam que os enviasse por e-mail, em vez de dactilografados à máquina e pelo correio.

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5 Comments:

Blogger CPrice said...

dei comigo a pensar .."e agora? terá computador?" .. fabuloso Sr. LN .. como sempre.
Sei que me repito mas desejosa de continuar a ler por aqui.
Bom fim de semana :)

9:59 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Fabulosos os teus contos, vou ficar por aqui, boa descoberta, o dia já valeu a pena! :-)
maria joão
mulheresforadehoras

10:58 da manhã  
Blogger Luis Naves said...

agradeço muito a vossa leitura. a história, naturalmente, vai continuar

2:44 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

:-) obrigada
maria joão

3:14 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Estou suspensa...

5:46 da tarde  

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