15.5.07

Territórios de Caça (XIV)


14. Demorara algum tempo a ganhar coragem para ler o dossier. Quando me decidi a fazê-lo, peguei ao acaso num dos documentos. Estava escrito à mão, em tinta permanente, sem emendas:
"O mal pode vestir sempre a pele inócua da coexistência. Aliás, o mal tem múltiplas formas, tantas quanto as estratégias individuais para sobreviver. Mas o compromisso, que nos parece sempre o mal menor, é afinal uma pena eterna. Eu sei, pois sou um especialista. Tenho esta habilidade de compreender depressa cada ser humano, aquilo que omite e esconde, o que ama ou esquece. Tenho esta maldição de compreender em demasia, de ser lúcido num mundo enlouquecido. Por isso, lembro-me muito bem de um episódio onde compreendi para além da banalidade do momento.
Certo dia, durante uma viagem na província, encontrei um camponês de ar matreiro. Ele devia ser meio analfabeto e nem desconfiou de mim, porque eu vestia roupas de cidade, sim, mas à maneira de um estudante pobre ou de um operário em visita à terra. Estava frio, mas já não havia gelo. A camioneta serpenteava estrada fora, numa manhã de chuva, com protestos das mudanças perras e do motor fatigado. Perguntei ao camponês para onde ia e ele olhou-me, primeiro com desconfiança; depois lá se tranquilizou, por qualquer razão, e decidiu-se a contar a sua história:
‘Vou ao tribunal’ admitiu. ‘Tenho de me apresentar todas as semanas’.
‘Por causa das perturbações?’ perguntei, usando o eufemismo popular para a contra-revolução que abalara o país, cinco meses antes.
Ele confirmou, com um gesto da cabeça.
‘E qual foi a sua sentença?’ perguntei.
‘Fui condenado à morte’.
Ri-me às gargalhadas, o que o surpreendeu. Depois, o camponês riu-se também.
‘Então o tio foi condenado à morte e anda aqui em liberdade, no autocarro da carreira?’
‘Pois é, filho! Eles não nos podem matar a todos, não é?’, respondeu ele, num tom sonso.
Disfarcei, ri-me também da resposta, mas perdera o ar superior. Pensei no medo e na dúvida, depois desviei a conversa.
O autocarro acelerou numa série de rectas e vi que havia pessoas em ambos os lados da estrada: não sei porque estavam ali, à chuva e ao frio, no meio do campo, sem nenhuma aldeia à vista; pareciam esperar alguma coisa ou era como se apenas não tivessem nada para fazer; a maioria estava de um dos lados, em filas soturnas, as mãos a segurarem os casacos; homens e mulheres; depois, havia um, isolado, um rapaz novo, por qualquer motivo na margem oposta do asfalto, com um aspecto ainda mais infeliz e miserável, numa solidão demorada.
Nunca entendi a essência daquela visão, mas ela fez-me compreender algo com longo alcance para mim: soube desde então que viveria o resto da minha vida no lado errado da estrada".

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3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Tardava, mas valeu a pena…despacha-te…:-)
maria joão

9:52 da manhã  
Blogger CPrice said...

"o lado errado da estrada" .. como na vida .. :) adorei este episódio.

10:32 da manhã  
Blogger Luis Naves said...

agradeço os comentários e tentarei acelerar a publicação da novela

6:52 da tarde  

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