10.5.07

Territórios de Caça (XI)


11. O padre János era um homem alto e enxuto, com menos de 60 anos, e que me pareceu de uma palidez cadavérica. Ele foi pouco efusivo nos cumprimentos. Fárkas elogiou a sua nomeação como bispo, mas o religioso não parecia entusiasmado, com a expressão sofrida de quem tinha um mal no estômago. Quando lhe apertei a mão, senti a pele dele suada, os músculos flácidos. Foi um contacto quase repugnante e apressei-me a retirar a minha mão.
"O padre János vai agora ouvir-me em confissão", disse Fárkas, para minha grande surpresa, pois até aí nunca imaginara que o meu vizinho fosse católico. Ele pediu-me que esperasse um pouco, que seria coisa rápida. "Quase não tenho pecados", explicou, com uma largo sorriso feliz. "O importante é o poder libertador da confissão. Aliás, devias experimentar um dia, Lajos".
"Sou ateu", repliquei.
Fárkas fez um gesto de quem lamentava o fim do mundo e reparei que, estranhamente, o padre olhava para um ponto indefinido, completamente alheio à nossa conversa, perdido algures na nave do templo, como se rezasse ou pensasse em algo distante.
Quando fiquei sozinho, sentado nos largos bancos corridos, em frente ao altar, à cruz, aos vitrais que mostravam a glória de santos, em vez da paz regressou à minha consciência o tropel dos últimos acontecimentos e o fogo em que ardia uma espécie de paixão, certamente uma tentação, feita de ansiedade, da antecipação de tocar aquele corpo que me devorava, da brancura da pele de veludo, do riso de contentamento, da forma que se moldava à minha mão e que tremia sob a minha pele...
...Tentei soletrar o seu nome e o que via à minha frente, numa enorme pintura clássica, o corpo flagelado de um Cristo alto e esguio, quase nu, como eu próprio estivera, sobre um lençol, na brancura daquela mortalha, enquanto Csilla me tocava ao de leve, com ternura, apenas com a ponta dos dedos; pois que se me cravasse com as unhas não teria sido menor o meu júbilo sofrido e a dor sublime; na figura de braços estendidos e olhar virado para o vazio do céu, chagas abertas, no dorso, no ventre, nas coxas; e eu sabia que também tinha o corpo assim em feridas, marcas produzidas por carícias, em golpes que jamais seriam visíveis...
...E, sobretudo, meditei na minha solidão. Ao pensar em Sara, que esquecera durante um dia inteiro, percebia de súbito que nada mais me podia amarrar a esse passado de silêncios e rotinas. O que um dia me excitara em Sara era o contraste da minha pele mais escura com a brancura extrema da dela, apenas isso, e os cabelos ruivos que caíam em anéis suaves sobre os ombros, e os olhos azuis (que abria desmedidamente) sempre que eu a abraçava. Tinha seios pequenos, corpo magro, e quase temia magoá-la com o peso dos meus músculos; e o que me deixava doido, em Csilla, era exactamente o inverso, o que nunca tivera com Sara: ela gozava com o sexo, derretia-se à minha frente, numa festa demorada. E, de súbito, ao observar as imagens da igreja, que se misturavam estranhamente com as minhas memórias, percebi os olhares lânguidos do êxtase, a transfiguração, a sensação de leveza que fazia flutuar os santos numa beatitude contemplativa. E as duas formas de prazer, o pecaminoso e o celeste, juntavam-se num só, que era electrizante e sôfrego, insuficiente, demasiado pouco...

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4 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Adorei o desmontar do arquétipo de Lilith mulher primordial na forma de Csilla, a aceitação de que existem constelações dentro de cada um a descoberta que o profano e o divino podem e devem coexistir.
Continue, estou a adorar a leitura, não me faça passar por periodos de abstinência de palavras nutritivas demasiado longos. :-)
maria joão
mulheresforadehoras

maria joão
mulher

10:08 da manhã  
Blogger Luis Naves said...

obrigado, maria joão, pelo comentário. esta história irá continuar e espero que o ritmo possa satisfazer todos os leitores

2:27 da tarde  
Blogger CPrice said...

"pegando" na sua resposta Sr. LN .. aprendi a ler ao ritmo da sua escrita .. que se mantenha :)

2:46 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Bem a Once é uma mulher calma e ponderada, gostava de ser assim, na parte que me toca a exaltação é muita e a calma nenhuma. Vou hoje à FNAC procurar os seus livros "O Silêncio do Vento", "Os Reis da Peluda" e "Homens no Fio" a jeito de estratégia adaptativa para fazer frente a abstinência de textos ao ritmo da minha gula.
:-) maria joão

2:54 da tarde  

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