Se me deitar de costas vou ser mais feliz.
Se me deitar de costas no chão vou ser mais feliz.
Pequenos textos, pequenos prazeres
16. No dossier havia várias fotografias, cujo sentido não compreendi. Soldados, uma foto de Budapeste, talvez nos anos 50. Dois homens em skis, no meio de uma floresta. Numa das imagens, estavam diversos oficiais, com números; mais em cima, escrito a lápis: "Hargitai", mas era impossível identificar qual dos oficiais era Hargitai, sem mais nenhuma informação sobre essa pessoa. Havia fragmentos de textos, mas só copiei um deles para o meu caderno:
"Não imagino porque razão me interessei por aquele prisioneiro. Talvez ele se parecesse comigo, numa circunstância que podia ter sido a minha. Hargitai estava preso há dois anos. Era um homem orgulhoso, calado, sem família e que não parecia ter muitos amigos na comunidade dos detidos. O que fiz, a princípio pretendia ser uma experiência: fazer constar que fulano dera algumas informações, separá-lo da massa dos outros presos, para proteger o nosso verdadeiro informador nas celas. A ideia era iluminar aquela personagem inocente, que tinha todas as condições para se destacar da massa anónima. E, ao transformá-lo num farol que atraía as atenções gerais, preservava-se o verdadeiro culpado.
Foi o que fiz, até com ajuda do informador. Chamei o alvo para consultas médicas, marquei outros encontros onde estavam diferentes oficiais do campo; conversávamos, ficávamos no calor do gabinete; tudo tinha um aspecto inocente; depois, fingi um tratamento que não parecia necessário; fiz constar isso mesmo, alimentando as suspeitas; aproveitei o clima de paranóia e a maldade natural do ser humano.
Ao fim de algumas semanas, Hargitai já parecia um peixe fora do cardume. Começou a andar verdadeiramente sozinho, talvez ainda iludido com a sua independência. Nessa altura, compreendi que o meu prisioneiro era odiado, não pelas suspeitas que começavam a incidir sobre ele, mas apenas porque não cumprimentava as pessoas que desprezava e por se considerar mais digno do que os outros. Estava autenticamente convencido da superioridade dos seus valores, o que é algo de insuportável para muita gente. Por exemplo, do alto do seu moralismo, Hargitai exigia um tratamento igual para todos os prisioneiros, contestando abertamente o sistema hierárquico que existia no campo (os próprios prisioneiros tinham recriado uma nova sociedade de classes).
E um dia, o nosso informador aproveitou uma daquelas discussões de cela, sobre a autoridade, para lançar a farpa que tínhamos previamente combinado: Hargitai defendera qualquer coisa inofensiva sobre o uso e a limpeza das casas de banho, quando o nosso informador disse: ‘Falas como um verdadeiro comunista’. Na frase de aparência inocente, havia uma insinuação venenosa.
Nunca se imagina que as relações de poder e a luta pelo território, os comportamentos de medo e de agressão, se tornem ainda mais brutais no ambiente confinado e de recursos escassos de uma prisão política. Para o carcereiro, o inimigo é a solidariedade entre os presos e, enfim, tudo aquilo a que nos habituámos a chamar de humano, embora o verdadeiro humano seja o acto de isolar a vítima, e depois, de a caçar e matar para nosso deleite.
Ao fim de algumas semanas, após ter perdido a solidariedade dos outros, Hargitai estava lentamente a perder peso. Foi nessa altura que tive a ideia de lhe dar comida extra, uma delicatessen a que a sua fome não poderia resistir, por muito que a combatesse o orgulho. E, claro, bem manipulado pelo nosso informador, alguém descobriu o petisco assim tão habilmente plantado na fragilidade da minha vítima.
A partir desse momento, correu entre os presos a notícia confirmada de que Hargitai era o informador, embora fosse apenas um iludido, um pobre idealista apanhado nos poderosos acasos do destino. Em 56 até se portara com coragem, mas fizemos correr que era tudo mentira, que já nessa altura fora delator sob tortura.
Eu fizera-lhe um cerco lento, uma caça de paciência, à espera que aquele homem aceitasse a fatalidade que se lhe impunha.
Apenas subestimei a humanidade dos outros. Cada um dos prisioneiros virou-se contra Hargitai que, desprezado por todos, foi mergulhando num abismo de honra amarfanhada. E cada prisioneiro com quem se cruzava segredava-lhe que seria melhor se ele acabasse de vez com a sua vida sem valor. E foi isso mesmo que Hargitai fez: numa noite de lua cheia, saiu da camarata e correu, feito um doido, para o ponto mais protegido do campo, enquanto gritava ‘nunca traí, nunca traí’. Derrubou-o uma rajada de metralhadora".
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15. O texto estava escrito à mão, com a mesma letra do anterior. Estava acompanhado da fotografia de um homem novo. Tinha um título, "memória", com a palavra "conto" à frente (Fárkas dissera que aquilo não era literatura, mas tinha esta palavra escrita, numa letra bem desenhada):
«Um saco está cheio, por exemplo, com areia. De repente, por um qualquer passe de magia, essa areia vaporiza-se, desaparece de forma instantânea. O saco perde o seu interior e, subitamente imaterial, deixa-se cair por efeito da gravidade, flácido e lento. A seda pode escorrer da mesma maneira, parecendo uma torrente de coisa nenhuma.
Foi assim que tombou o corpo, como se tivesse ficado subitamente esvaziado, ou como se a vida fosse um tecido de seda, em queda no universo. Nem fez nenhum som. Isso surpreendeu-me muito, pois esperava que o colapso daquela existência, a sua passagem da matéria para o nada, fizesse algum tipo de barulho dramático.
Enfim, estas duas impressões (a de um corpo a tombar como se fosse um tecido de seda) e a ausência de um ruído apropriado, resumem tudo o que me lembro do meu primeiro assassinato.
Claro que me recordo também do olhar absolutamente pérfido de Horváth, que estava bêbado e já não media os seus gestos. Tirou a pistola, passou-a para a minha mão e disse: ‘Não consigo acertar no estafermo, parece que se mexe muito. Mata-o tu, é uma ordem’.
Não tremi, nem nada. Pelo contrário, fiquei imperturbado. Mas, ao pegar na pistola, senti nas minhas mãos o que sentira quase vinte anos antes. Lembro-me, foi ainda antes da guerra, num verão qualquer, talvez em 38...
...Devia ter uns seis anos e peguei nas pernas de trás de um coelho da minha avó; fiz balançar o coelho, como se fosse um chicote e lancei a cabeça do bicho contra a esquina de um pilar de pedra que segurava a casa...
...Horváth falhara o primeiro tiro. Eu devia estar ali apenas para assistir ao fuzilamento e confirmar o óbito, certificar todos os procedimentos. Tentei convencê-lo a não matar o prisioneiro, mas senti a determinação maldosa no seu olhar, que não admitia contradições. O primeiro tiro que ele disparou acertou no alvo, mas o ferimento não era mortal. O uniforme de Horváth estava manchado de sangue, havia uma poça de sangue no chão, a bala entrara no pescoço (não percebia como podia ter falhado tanto); o condenado estrebuchava, numa agonia horrível. Horváth estava a entrar num nevoeiro de gestos perdidos, sem saber o que devia fazer a seguir, bebera demasiado e não conseguia dar o tiro de misericórdia...
...O coelho estava vivo e havia força nos seus músculos, uma vitalidade que pressentia com as minhas mãos de criança. Mas quando lhe parti o pescoço, foi como se uma mola se quebrasse num brinquedo e tudo ficou flácido, uma gelatina sem ânimo. O coelho deixou de abanar...
...Por isso, peguei na pistola e encurtei o sofrimento do homem. Horváth riu-se: ‘Perdeste a virgindade’, disse o bruto. Observei com nitidez que ele tinha as calças do uniforme cheias de sangue e as botas altas manchadas. O uniforme do comandante estava uma vergonha. Apeteceu-me insultá-lo e dar murros naquele focinho de porco. Podia ter recusado a pistola: dizer-lhe que era médico, que não era um facínora. Mas preferi ficar calado, pensei no sofrimento do prisioneiro e fiz-lhe o favor de o poupar a minutos, talvez horas, de uma morte lenta. Depois, pensei, com surpresa infinita, que as mãos não me tinham tremido. E lembrei-me...
...Tinha seis anos e senti uma alegria imensa ao matar o coelho. A cabeça pendia no ar, um pouco grotesca, pareceu-me. E comecei a rir de forma tão histérica, que quando me descobriram, aos gritos, tiveram de me dar estalos, para que me calasse...
...Horváth fizera de propósito, para me humilhar, porque pensara que eu não mataria o homem. Mas havia uma razão ainda mais forte para estar irritado com aquela besta: o facto, tão simples e transparente, de ter adorado premir o gatilho. A pistola estalara: o barulho foi um pouco mais seco do que eu estava à espera e o coice um pouco mais forte; sobretudo, fascinou-me ver o crânio a explodir ao impacto da bala; e o que me surpreendeu foi simplesmente o corpo a tombar para o lado, como se fosse um véu de seda a cair num chão encerado, e a ausência de ruído depois do tiro. E fui inundado por uma sensação de poder e de prazer, a mistura exacta dos dois.
Nessa noite, Horváth continuou a beber, mas foi apenas o excesso que o impediu de matar outros prisioneiros. Havia um medo indizível a pulsar na noite, nas camaratas onde vidas precárias se agitavam, como se fossem coelhos paralisados. Eu não consegui beber uma gota. Estava demasiado lúcido. Procurei o ficheiro onde constava o nome do homem que eu matara e li todos os pormenores da sua vida, que era bastante banal. Achei estranho que todos aqueles factos sem nada de especial, compilados com tanto cuidado pela polícia, convergissem para um único ponto da história onde me encontrava eu próprio, de pistola em punho, à espera. Eu, imóvel, aguardando a chegada de uma vida vulgar que avançava para aquele ponto, exclusivamente para aquele ponto e não para um outro qualquer; pois essa vida, pensei, servira apenas para preencher a necessidade da existência de um encontro, no espaço e no tempo, que nenhum de nós previra.
Sei agora que os corpos celestes não se movem em órbitas previsíveis, mas num incerto turbilhão feito de atracções e repulsas, numa sopa de caos, até ao triunfante momento, o solitário segundo, inevitável desde o início dos tempos, em que cruzam o seu percurso com aquilo, tudo ou nada, que esteve uma eternidade à espera».
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