16.11.06

Quando os rapazes desapareceram na cidade

Subiu a avenida a passos largos, o coração a bombear saiam da frente, a fintar os carros, a não reparar nem no sol nem nas árvores a esverdear o tempo. Era Verão e pela primeira vez num dia assim não sorria. E era ainda rapaz…
Virou à direita, com o peito a saltar, a querer ir à frente, um atacador desatado, trocos a tilintar nos bolsos, os olhos a tentarem ver por uma névoa esbranquiçada o caminho e as pessoas – cada vez menos garotas, cada vez menos rapazes, cada vez mais homens e a espalharem-se. Um grupo de gente estranha, calva, a balouçar-se, a cantarolar “hara krishna, hara krishna”.
Por dentro pensava no dia mais negro da sua vida, miúdo, escondido num recanto do jardim, a chorar, agachado, junto de um limoeiro, e ele, como um pai, a sorrir-lhe, a pôr-lhe uma mão no ombro e a dizer a vida às vezes é assim.
Passou a porta e foi em frente, assustou o segurança, que nem disse nada, subiu a dois e dois, arfando, comendo o espaço, chegou ao quarto andar, perguntou pelo gabinete do homem. Ali, ali ao fundo, ao fundo à direita. Olhou-a e já lá estava. Assim como por artes.
Na pequena sala, alcatifada, uma cadeira, dois ou três quadrinhos com diplomas, e, à secretária, ele: magro, olhos azuis, uma cara escavada, o mesmo sorriso daquela tarde do passado, já lá ia a urna para o campo santo. Sobre o tampo, o retrato da mulher e dos filhos, cinco, apólices disto e daquilo, de automóveis, de habitação, de vida, que começou a arrumar com uma estudada calma dentro de pastinhas, que sobrepunha geometricamente num canto, enquanto alinhava com elas um lápis acabado de afiar, uma caneta Mont Blanc, e criava espaço para assentar os cotovelos, e entrelaçar os dedos das mãos, para apoiar nelas o queixo – e o sorriso.
O rapaz sentou-se, ainda com a imagem dela a roê-lo, a doer-lhe. E ele fixo na estátua do marquês, a lutar por calma, ao mesmo tempo que lá em baixo, nas suas próprias névoas, como em casulos, os rapazes se transformavam.

- Cabrão! Grande, grandessíssimo cabrão!

O homem continuou a olhar para a estátua inerte e verde, esquecido do sorriso, que continuava a dizer que às vezes a vida é assim.

Minutos depois – quatro, ou três, ou dois, ou menos –, o rapaz, já quase outro, já sem o tempo a doer-lhe, respirou fundo, levantou-se, sem despegar os olhos do homem, ajustou o kispo, andou devagar até à porta, que saiu e fechou sem pressa, até a ouvir no trinco, voltou pelo corredor a passos curtos, desceu a escada agora a um e um, disse boa tarde ao segurança, contornou a praça, desceu a avenida, a névoa esbranquiçada dissipara-se, voltara o sol. Mas era tarde. Parou numa passadeira e olhou para si, de baixo para cima, sem se reconhecer, depois à volta. Já não havia rapazes na cidade.

1 Comments:

Blogger JCA said...

Excelente texto este,parabens,poderia ser um de nós.

Um abraço

1:48 da tarde  

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