O regresso
O espaço vazio entre as duas fileiras de casas tinha ondas de lama seca; parecia um instante congelado no tempo.
A casa da avó Bóri ficava no fundo do bairro pré-fabricado, na zona mais miserável do gueto. Mas Dánko não via o lugar dessa forma; para ele, aquela disposição das habitações (filas de prisioneiros na parada) lembrava-lhe a infância; o céu por cima como que viajara do passado (uma nuvem grossa flutuava no azul, parecia um veleiro); e a brisa ligeira que agitava as árvores da mata ao lado era semelhante a um rio entre margens plácidas, num deslizar feliz.
Avançou. Esperara uma hora antes de entrar no bairro dos ciganos. Não queria ser visto pelos vizinhos, pelo menos por enquanto. Escolhera a hora da sesta, quando apenas alguns miúdos brincavam no espaço em frente às casas; e os miúdos ignoraram o intruso.
O autocarro chegara à cidade mais depressa do que tinha imaginado (havia estradas novas, que não conhecera antes); já gastara os mil forints que lhe tinham dado e, por isso, teve de caminhar da estação de autocarro até ao gueto, a pequena sacola ao ombro. De qualquer forma teria andado, mesmo que tivesse dez mil no bolso. O bairro social ficava fora da cidade e mesmo no exterior dos subúrbios, na orla de uma aldeia que apenas conhecera com gente pobre, mas que agora possuía novos habitantes endinheirados, e que pressionavam a câmara a mudar o bairro cigano para uma zona desfavorecida.
Mas, agora, só se preocupava com a avó Bóri. Estava em frente à porta (uma porta meio partida e com marcas de sujidade sobre a tinta pelada). Bateu suavemente e esperou, enquanto uma camada de silêncio se sobrepunha aos ruídos do mundo e a luz baça da tarde abafada lhe fazia doer a vista.
Foi ela quem abriu a porta. Envelhecera e não escondeu o desagrado de o ver ali:
“Já te esperava!”, disse a avó Bóri.
Dánkóoqueria dizer-lhe que não tinha mais nenhum sítio para onde ir, mas o seu orgulho não lhe permitiu pronunciar essas palavras. Limitou-se a saudá-la. Mas não entrou na casa. Esperou, obediente, que ela fizesse um gesto vago com a mão, que apenas fez porque não queria que ele fosse visto ali pelos vizinhos. A avó não precisou de explicar, era evidente pela sua expressão desconfiada, o olhar fugaz que deitava para os lados, como que a vigiar se era vigiada.
Dánko sentou-se numa cadeira da cozinha. Observou o grande calendário com a Virgem Maria. Era ainda o mesmo calendário que conhecera, anos atrasado. Ficara na parede porque a avó gostava da imagem da Virgem Maria, uma mulher pálida e magra, sorrindo levemente, como uma vítima que aceita o destino. Dánko tinha as mãos grossas pousadas sobre a mesa; a cozinha separava-se das restantes zonas da casa por tecidos leves pendurados e que faziam de cortinas, filtrando o pouco sol que entrava. Havia um cheiro a espaço fechado, que lhe recordou a solidão que passara, dias, semanas, meses.
“Não podes ficar!”, disse, de súbito, a avó Bóri, como se fosse a única coisa que podia dizer.
“Eu sei”, respondeu Dánko. E a avó moveu as sobrancelhas, talvez a interrogar-se porque razão ele regressara. Mas não perguntou mais nada. A velha ficou silenciosa, a ver as mãos grossas do neto sobre a mesa vazia.
Dánko ergueu-se, sorriu. Ao despedir-se da avó, sentiu vontade de a beijar na face, mas não o fez. Já estava na rua, quando disse:
“Não fui eu! Não sei como eles souberam, mas não fui eu!!
A avó Bóri olhava silenciosamente para Dánko, que acrescentou:
“Eu ia pagar a dívida até ao fim, mas eles adivinharam, não sei como, mas souberam”.
E, nesse momento, a avó fechou a porta.
Era a hora de maior calor e toda a gente se protegera nas casas ou nas sombras. Alguns homens dormiam, sob uma árvore. Um deles estava de pé e viu Dánko, que tinha de passar nas proximidades. O homem fez uma careta de desprezo, cuspiu para o chão. E Dánko baixou os ombros, desviou-se humildemente, para evitar algum insulto que não pudesse deixar impune.
Andou durante horas, de regresso à cidade. E lembrou-se de um sítio no parque, onde poderia dormir naquela noite, sem ser incomodado. Na manhã seguinte, saberia talvez o que fazer.
O parque tinha forma de cruz e, no seu limiar direito, havia uma igreja protestante. Era na sombra dessa igreja que alguns vadios dormiam nos meses de Verão, em bancos de jardim. Ao aproximar-se desse sítio, acelerou o passo, como se não houvesse mais tempo para o encontrar. Se não encontrasse os vagabundos ficaria ainda mais vazio.
Viu de imediato o vulto de um homem atarracado e gordo. Reconheceu Szárka, o cigano tolo. Os dentes salientes e a cara estúpida, o corpo indolente que se abandonava no banco de jardim. O excluído dos excluídos, no seu poiso.
“Posso dormir aqui?”, perguntou Dánko. E Szárka encolheu os ombros; a sua boca alarve imitava um sorriso.
“Sou Dánko! Saí da prisão hoje!”
O tolo interessara-se:
“Mataste alguém?”, perguntou, numa pronúncia tola.
Dánko negou, com um gesto:
“Estava na prisão a pagar uma dívida...”
Szárka largou um riso de incompreensão. Dánko sentara-se no seu banco de jardim e explicava:
“A minha família tinha uma dívida com o Joshka Gordo, sabes quem é?”
O tolo abanou a cabeça.
“Não podíamos pagar e, como eu sou parecido com o Gordo, fui para a prisão em vez dele, fingindo ser ele. Estive lá um ano, mas devia ter ficado três anos, que era o tempo da sentença. Os polícias descobriram-me! Juro que não fui eu a desistir! Não denunciei ninguém, foram eles a descobrir!”
Szárka parecia compreender o que ele dizia, enquanto observava com tristeza aquele homem grande à beira de chorar.
“Ninguém acredita em mim! E, agora, o ano que passei na prisão não pagou nenhuma parte da dívida. A polícia anda à procura do Joshka Gordo e eu não tenho para onde ir”.
Dánko calou-se. Afundara-se no banco de jardim, sem saber o que faria a seguir. Szárka aproximou-se, abriu o saco de plástico, onde havia alguma comida, e mostrou-lhe, sorrindo, o interior. Oferecia a sua comida.
“Fico a dever-te”, disse Dánko, numa voz sufocada, tirando do saco um pedaço de pão duro.
Depois, sorriu para Szárka, o cigano tolo, que era tudo o que lhe restava no mundo inteiro.
A casa da avó Bóri ficava no fundo do bairro pré-fabricado, na zona mais miserável do gueto. Mas Dánko não via o lugar dessa forma; para ele, aquela disposição das habitações (filas de prisioneiros na parada) lembrava-lhe a infância; o céu por cima como que viajara do passado (uma nuvem grossa flutuava no azul, parecia um veleiro); e a brisa ligeira que agitava as árvores da mata ao lado era semelhante a um rio entre margens plácidas, num deslizar feliz.
Avançou. Esperara uma hora antes de entrar no bairro dos ciganos. Não queria ser visto pelos vizinhos, pelo menos por enquanto. Escolhera a hora da sesta, quando apenas alguns miúdos brincavam no espaço em frente às casas; e os miúdos ignoraram o intruso.
O autocarro chegara à cidade mais depressa do que tinha imaginado (havia estradas novas, que não conhecera antes); já gastara os mil forints que lhe tinham dado e, por isso, teve de caminhar da estação de autocarro até ao gueto, a pequena sacola ao ombro. De qualquer forma teria andado, mesmo que tivesse dez mil no bolso. O bairro social ficava fora da cidade e mesmo no exterior dos subúrbios, na orla de uma aldeia que apenas conhecera com gente pobre, mas que agora possuía novos habitantes endinheirados, e que pressionavam a câmara a mudar o bairro cigano para uma zona desfavorecida.
Mas, agora, só se preocupava com a avó Bóri. Estava em frente à porta (uma porta meio partida e com marcas de sujidade sobre a tinta pelada). Bateu suavemente e esperou, enquanto uma camada de silêncio se sobrepunha aos ruídos do mundo e a luz baça da tarde abafada lhe fazia doer a vista.
Foi ela quem abriu a porta. Envelhecera e não escondeu o desagrado de o ver ali:
“Já te esperava!”, disse a avó Bóri.
Dánkóoqueria dizer-lhe que não tinha mais nenhum sítio para onde ir, mas o seu orgulho não lhe permitiu pronunciar essas palavras. Limitou-se a saudá-la. Mas não entrou na casa. Esperou, obediente, que ela fizesse um gesto vago com a mão, que apenas fez porque não queria que ele fosse visto ali pelos vizinhos. A avó não precisou de explicar, era evidente pela sua expressão desconfiada, o olhar fugaz que deitava para os lados, como que a vigiar se era vigiada.
Dánko sentou-se numa cadeira da cozinha. Observou o grande calendário com a Virgem Maria. Era ainda o mesmo calendário que conhecera, anos atrasado. Ficara na parede porque a avó gostava da imagem da Virgem Maria, uma mulher pálida e magra, sorrindo levemente, como uma vítima que aceita o destino. Dánko tinha as mãos grossas pousadas sobre a mesa; a cozinha separava-se das restantes zonas da casa por tecidos leves pendurados e que faziam de cortinas, filtrando o pouco sol que entrava. Havia um cheiro a espaço fechado, que lhe recordou a solidão que passara, dias, semanas, meses.
“Não podes ficar!”, disse, de súbito, a avó Bóri, como se fosse a única coisa que podia dizer.
“Eu sei”, respondeu Dánko. E a avó moveu as sobrancelhas, talvez a interrogar-se porque razão ele regressara. Mas não perguntou mais nada. A velha ficou silenciosa, a ver as mãos grossas do neto sobre a mesa vazia.
Dánko ergueu-se, sorriu. Ao despedir-se da avó, sentiu vontade de a beijar na face, mas não o fez. Já estava na rua, quando disse:
“Não fui eu! Não sei como eles souberam, mas não fui eu!!
A avó Bóri olhava silenciosamente para Dánko, que acrescentou:
“Eu ia pagar a dívida até ao fim, mas eles adivinharam, não sei como, mas souberam”.
E, nesse momento, a avó fechou a porta.
Era a hora de maior calor e toda a gente se protegera nas casas ou nas sombras. Alguns homens dormiam, sob uma árvore. Um deles estava de pé e viu Dánko, que tinha de passar nas proximidades. O homem fez uma careta de desprezo, cuspiu para o chão. E Dánko baixou os ombros, desviou-se humildemente, para evitar algum insulto que não pudesse deixar impune.
Andou durante horas, de regresso à cidade. E lembrou-se de um sítio no parque, onde poderia dormir naquela noite, sem ser incomodado. Na manhã seguinte, saberia talvez o que fazer.
O parque tinha forma de cruz e, no seu limiar direito, havia uma igreja protestante. Era na sombra dessa igreja que alguns vadios dormiam nos meses de Verão, em bancos de jardim. Ao aproximar-se desse sítio, acelerou o passo, como se não houvesse mais tempo para o encontrar. Se não encontrasse os vagabundos ficaria ainda mais vazio.
Viu de imediato o vulto de um homem atarracado e gordo. Reconheceu Szárka, o cigano tolo. Os dentes salientes e a cara estúpida, o corpo indolente que se abandonava no banco de jardim. O excluído dos excluídos, no seu poiso.
“Posso dormir aqui?”, perguntou Dánko. E Szárka encolheu os ombros; a sua boca alarve imitava um sorriso.
“Sou Dánko! Saí da prisão hoje!”
O tolo interessara-se:
“Mataste alguém?”, perguntou, numa pronúncia tola.
Dánko negou, com um gesto:
“Estava na prisão a pagar uma dívida...”
Szárka largou um riso de incompreensão. Dánko sentara-se no seu banco de jardim e explicava:
“A minha família tinha uma dívida com o Joshka Gordo, sabes quem é?”
O tolo abanou a cabeça.
“Não podíamos pagar e, como eu sou parecido com o Gordo, fui para a prisão em vez dele, fingindo ser ele. Estive lá um ano, mas devia ter ficado três anos, que era o tempo da sentença. Os polícias descobriram-me! Juro que não fui eu a desistir! Não denunciei ninguém, foram eles a descobrir!”
Szárka parecia compreender o que ele dizia, enquanto observava com tristeza aquele homem grande à beira de chorar.
“Ninguém acredita em mim! E, agora, o ano que passei na prisão não pagou nenhuma parte da dívida. A polícia anda à procura do Joshka Gordo e eu não tenho para onde ir”.
Dánko calou-se. Afundara-se no banco de jardim, sem saber o que faria a seguir. Szárka aproximou-se, abriu o saco de plástico, onde havia alguma comida, e mostrou-lhe, sorrindo, o interior. Oferecia a sua comida.
“Fico a dever-te”, disse Dánko, numa voz sufocada, tirando do saco um pedaço de pão duro.
Depois, sorriu para Szárka, o cigano tolo, que era tudo o que lhe restava no mundo inteiro.
Etiquetas: conto
Sempre a mesma melancólica doçura. Obrigada, Luis.
Eu é que agradeço o comentário
Fiquei sem palavras. Que dor.
Agradeço a visita e o comentário. Aproveito para vos felicitar pelos excelentes blogues, Claras em Castelo e Defender o Quadrado. Sou um leitor habitual deste último (que está cada vez melhor) e serei agora também de Claras em Castelo
Agradeço o cumprimento. Gosto muito dos teus textos nos "Prazeres Minúsculos" e das tuas reflexões no "Corta-Fitas". Mas tens estado pouco assíduo...
Posso explicar: Escrever o tipo de texto que estou a tentar fazer nos prazeres leva o seu tempo, por isso a regularidade tem diminuído, o que espero seja uma evolução para melhor. E tive de escolher entre o corta-fitas e os prazeres, pois o primeiro exigia também muita disponibilidade