16.8.06

Apelo do moinho - 1

Entretenho-me aqui sozinho más o campo todas as tardes, qu’ as manhãs já a nha senhora não mas deixa aqui fazer, quer companhia, tamém tá velha como eu, né. Faço um esforço tremendo pra me recordar do passado, mas acho qu’ o moinho é munto antigo, já vem do meu bisavô ou trisavô, até, pois. Antigo. Só eu já’ qui ando há sessenta e seis, pois, desde qu’ era garoto. Buli aqui munto. Agora só p’ra cá venho quando me apetece, qu’ é todos os dias, pois, tá claro, né, tamém deve ser o único vício que tenho, e isso agrada à nha gaivota, e ficamos os dois satisfeitos, qu’ eu já vou velho pr’a outros vícios!. É só o vento e o céu, um sossego que não é como lá na cidade, nem na vila, sequer, pois.
Clientes já quase não tenho, quem é qu’ hoje quer cozer o pão com farinha moída assim à antiga, né. Os novos não se atraem pra trabalhar, aqui há uns tempos ainda se abeirou aí um moço da Assafora, ma queria dinheiro logo e paciência não a tinha, ora com’ é que se pode lidar uma mó alveira de seiscentos quilos sem paciência? Não se pode, né? E eu vender isto não vendo, ai isso era o mai mal que me podia acontecer, qu’ as memórias são muntas. A câmbra não se tenta, o parque natural, qu’ é como lhe chamam, é uma cambada, pois, assim mesmo, tirando a doutora, engenheira, tá claro, não me leve a mal. Mas a verdade é qu’ há dois anos quase que não vejo um tostão do acordo que fizeram vocês cômigo, pois, né. Sará munto, cento e vinte e cinco eros por mês, pergunto eu, sará assim um subsido tão pesado que já tenho caminhado pr’a lá tanta vez e não o cumprem e não há uma alma com um pedacinho de tempo pr’a me ouvir, nem o responsável, todo sorrisos todo sorrisos apenas daquela vez qu’ acompanhou cá os da televisão.
Já vários me têm dito Benedito não te metas com os ministérios qu’ isso não é gente de confiança, larg’ó moinho mas é. Ma’ isto é a nha vida, abalo do moinho, faço o quê, acabo de morrer na tasca do Timóteo, com’ ós outros, um bocadinho cada dia, então pr’a isso distraio-me aqui, entretenho-me com o silêncio e às vezes com os garotos. Há dias uma franguota duma escola que aí veio, olhou pr’ áquela nesguinha de mar lá longe, mais este verde à volta, e diz que rica casa de campo eu aqui construía! Olhe, foi de rir! Não me contive, eles querem lá saber dos moinhos, querem é tar perto da água pr’ós surfes, são novos ma’ não são nada parvos, veja lá se eles não percebem logo pr’ó qu’ isto está destinado mal eu lhe vire as costas.
Por isso é que tão cedo não arredo. Eu paro, o moinho pára comigo. Pois. Tenho pena, tenho pena de tanta ignorância, de tanto desapego a esta beleza, de tanto desvario de dinheiros mal gastos, não se assuste que não é com a doutora, com a engenhêra, digo, que vai dar no mesmo, a mim desde que me paguem o combinado não me custa chamá-los a todos de doutores. Eu fico o doutor da farinha, pronto, pode-se dizer assim, né. É preciso a gente entreter-se com qualquer coisa na vida, e isto é uma ciência que também se faz de palavras complicadas, ora diga-me lá se sabe o que é um paneiro ou assim.