Crónica de Farkasvár (final)
Na parte sul de Farkasvár existe uma estaçäo ferroviária onde começa uma linha condenada. Fica no fundo de um bairro de habitaçäo barata, de prédios de painel pré-fabricado, e depois de uma espessa mata. Sobe-se por uma rampa mal iluminada e ali está o edificio baixo (anos 30, arquitectura funcional e algo sinistra). O relógio ainda pontual, o interior vazio, as janelas fechadas. Do outro lado da colina, há arvoredo e, depois, campos de trigo.
Ao lado do edificio persiste um café (enfim, näo passa de uma tasca mal frequentada), e por ali vogam almas noctívagas, sem rumo; olham o televisor antigo, cheio de fantasmas, e conversam coisas que näo distingo a esta distäncia.
O último comboio está na plataforma: parece respirar, ganhando fölego antes de partir. É uma velha máquina diesel, mas vestida para a ocasiäo por um mágico ferroviário: interior luminoso e confortável, por baixo, entranhas obsoletas, de tecnologia ultrapassada; por dentro, forros simpáticos, ar condicionado.
A tarde desfaz-se num crepúsculo lento, que recorta as árvores do outro lado do espaço da estaçäo. Nas nossas costas (eu e a Klára observamos a máquina que descansa nos carris), há uma fileira irregular de pequenas garagens; um portäo aberto, um único, contesta a simetria.
Chegam os primeiros passageiros e eu pergunto para onde vai o comboio. Tento falar em voz muito baixa, para näo acordar a máquina.
„Vai para o fim do mundo, parece-me”, diz a Klára.
„E onde fica isso?”
Ela estica o braço, olha para diante, para um vazio que escurece.
„Atravessa umas quintas e chega até um lugar onde existe uma fronteira. Para lá dessa fronteira, é tudo muito incerto.”
Agora, surge um homem velho, numa bicicleta; sobe a plataforma; entra no comboio. O portäo da garagem fechou-se e move-se a sombra de alguém, que passa por nós.
„Parece que esta linha está condenada. É um tempo que acaba”, diz a Klára.
Observamos mais passageiros, aproxima-se o momento da partida. Duas mulheres idosas; um camponës; um jovem de bicicleta. O céu está a perder o azul. Um operário cumprimenta o homem gordo que termina o seu cigarro. Ambos sobem para o interior e o cheiro do tabaco dissipa-se e flutua até ao local onde estamos. O maquinista acende as luzes. A Klára canta uma cançäo infantil, que inclui um maquinista e doce de panqueca. A revisora vai dar ordem de partida.
Nisto, um homem corre pela rampa da estaçäo. Voz grossa, esperem por mim, esperem por mim, e corre, com um pequeno saco na mäo. Täo poderosa voz! É magro e alto, com bigode fino, ar alegre e uns olhos que choram… Tem uma serena dignidade nos gestos e uma intensa figura, o que näo parece pertencer a este tempo... Como uma pomba, ele sobe para o comboio e ouve-se o assobio, a lanterna que oscila. Mas näo há apito da máquina, apenas o deslizar suave, que cresce para trepidaçäo regular.
E as luzes que desaparecem na curva, ao fundo, parecem arquear-se para sempre…
No café da estaçäo, os retardatários bebem, pensativos.
Só quando fica muito escuro decidimos descer a rampa e regressar á cidade adormecida.
Para o Joäo Galamba de Oliveira (1951-2006)
Que a viagem te seja fácil, camarada
texto escrito num teclado estrangeiro
Ao lado do edificio persiste um café (enfim, näo passa de uma tasca mal frequentada), e por ali vogam almas noctívagas, sem rumo; olham o televisor antigo, cheio de fantasmas, e conversam coisas que näo distingo a esta distäncia.
O último comboio está na plataforma: parece respirar, ganhando fölego antes de partir. É uma velha máquina diesel, mas vestida para a ocasiäo por um mágico ferroviário: interior luminoso e confortável, por baixo, entranhas obsoletas, de tecnologia ultrapassada; por dentro, forros simpáticos, ar condicionado.
A tarde desfaz-se num crepúsculo lento, que recorta as árvores do outro lado do espaço da estaçäo. Nas nossas costas (eu e a Klára observamos a máquina que descansa nos carris), há uma fileira irregular de pequenas garagens; um portäo aberto, um único, contesta a simetria.
Chegam os primeiros passageiros e eu pergunto para onde vai o comboio. Tento falar em voz muito baixa, para näo acordar a máquina.
„Vai para o fim do mundo, parece-me”, diz a Klára.
„E onde fica isso?”
Ela estica o braço, olha para diante, para um vazio que escurece.
„Atravessa umas quintas e chega até um lugar onde existe uma fronteira. Para lá dessa fronteira, é tudo muito incerto.”
Agora, surge um homem velho, numa bicicleta; sobe a plataforma; entra no comboio. O portäo da garagem fechou-se e move-se a sombra de alguém, que passa por nós.
„Parece que esta linha está condenada. É um tempo que acaba”, diz a Klára.
Observamos mais passageiros, aproxima-se o momento da partida. Duas mulheres idosas; um camponës; um jovem de bicicleta. O céu está a perder o azul. Um operário cumprimenta o homem gordo que termina o seu cigarro. Ambos sobem para o interior e o cheiro do tabaco dissipa-se e flutua até ao local onde estamos. O maquinista acende as luzes. A Klára canta uma cançäo infantil, que inclui um maquinista e doce de panqueca. A revisora vai dar ordem de partida.
Nisto, um homem corre pela rampa da estaçäo. Voz grossa, esperem por mim, esperem por mim, e corre, com um pequeno saco na mäo. Täo poderosa voz! É magro e alto, com bigode fino, ar alegre e uns olhos que choram… Tem uma serena dignidade nos gestos e uma intensa figura, o que näo parece pertencer a este tempo... Como uma pomba, ele sobe para o comboio e ouve-se o assobio, a lanterna que oscila. Mas näo há apito da máquina, apenas o deslizar suave, que cresce para trepidaçäo regular.
E as luzes que desaparecem na curva, ao fundo, parecem arquear-se para sempre…
No café da estaçäo, os retardatários bebem, pensativos.
Só quando fica muito escuro decidimos descer a rampa e regressar á cidade adormecida.
Para o Joäo Galamba de Oliveira (1951-2006)
Que a viagem te seja fácil, camarada
texto escrito num teclado estrangeiro
Esta prosa é delicada e repousante.
bem, é um simples adeus, talvez näo muito feliz