16.8.06

Crónica de Farkasvár (III)

Bálint sai da escuridäo a cambalear, veste t-shirt suja e calças velhas, mas nem sente o frio da noite. A barba desalinhada, a cabeça numa confusäo.
Na praça central, há dois palcos lado a lado e, no espaço rectangular formado com os edifícios, os trabalhadores da cämara colocaram fileiras de cadeiras de plástico, que o público já desalinhou. Bálint escolhe uma, estende-se nela, pés esticados, a enfrentarem o palco da direita (onde está a orquestra); para ver o outro palco, terá de inclinar a cabeça, pois o grande penso que tem na cara impede-lhe a visäo.
Afinaçöes, retardatários, o vento que se eleva, Bálint ainda sente a cabeça a andar á roda, (o vinho estava estragado) o amplificador descontrola-se para os agudos, as crianças näo se calam.
Podem começar, ordena o velho Bálint, com a sua barba confusa, o estranho penso da queda da semana passada (bebera demasiado e a enfermeira que o tratou era bonita, loura platinada).
E, de facto, o velho bebido parece comandar o concerto ao ar livre: a orquestra inicia uma passagem que teria soado belissimamente, se näo fosse o agricultor importante que, ao passar com o guarda-chuva espetado, magoa o velho nas costas e na cabeça. E nem uma desculpa, qué-queu-tenho-a-ver-com-isto?, vë lá onde pöes o ...; e temos concluído o primeiro incidente da noite de concerto ao ar livre, com palavröes, velhinhas escandalizadas, tudo por causa de um guarda-chuva intempestivo.
Mas a verdadeira tempestade prepara-se nos céus, embora agora se instale á custa dos violinos: o amplificador perdeu o norte e lançou um uivo que acorda toda a Farkasvár. Só o velho Bálint gostou da fífia eléctrica, bonita como cristal partido. Este acordava uma abóbora, explica.
A curiosa disposiçäo de palcos pode agora ser explicada: bailarinos percorrem o estrado, enquanto soa música da Transilvänia. O meu pai era da Transilvänia, diz Bálint, virado para a senhora simpática duas cadeiras ao lado, mas o vigilante agricultor do guarda-chuva, dois lugares adiante, ordena silëncio, qué-queu-tenho-a-ver-com-isto? näo te eriçes, o meu pai era mesmo da Transilvänia e veio em 1919, se queres saber...
Näo quer saber, viram-se costas ofendidas. A noite avança, com um novo número musical e maestro esforçado; passei muita fominha, eu, e esta música faz-me lembrar o meu pai e o que passámos na guerra e, depois, no comunismo, fica sabendo...
O importante agricultor agita de novo o guarda-chuva e pede silëncio. Bálint agita o braço e lança outro insulto. ao mesmo tempo, os dois homens levantam-se dos seus lugares, preparados para algo täo sério como a invasäo mongol. E, se näo chegasse a súbita chuvada, teríamos o segundo e mais grave incidente da noite. A orquestra parou, deslizam toldos e a multidäo desistente corre para as arcadas. De súbito, näo está ninguém ali. Confuso, o velho Bálint, que näo sentiu o frio, nem se apercebeu das gotas de água que agora surgem, gesticula no vazio.
Nas fileiras caóticas de cadeiras de plástico só fica Bálint, á chuva (que nem sente) a resmungar qué-queu-tenho-a-ver-com-isto?

Lajos Kormányos

Traduzido do original húngaro por Luís Naves
Texto escrito num teclado estrangeiro

1 Comments:

Blogger Cristina Leimart said...

Luís
Curiosamente (ou não...)este texto tem muita da sensibilidade que se nota nos teus textos originai em português. Há uma tonalidade comum na tua escrita, um tom, melhor dizendo, ou vários tons coerentes entre si, melhor ainda. E achei engraçado que o mesmo transpareça das tuas traduções.
bjns C

2:38 da tarde  

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