23.8.06

Moleskine

o sujo no chão durante a refeição, os legumes do prato impressionados com o peso da sujidade nas paredes, uma mulher de robe vermelho e óculos escuros a andar pela casa como se o sol lhe vivesse no tecto
- há vinte anos que não sei de si


o tempo a fazer-se nas fotografias da sala como comida engolida a passar toda junta pela garganta
- uma mulher sozinha a viver do cheiro das fotografias da sala; o robe vermelho que serve de vestido de gala, de vestido de noite, de vestido de ir ao pão: óculos de sol antigos nos olhos como se ali houvesse luz



a porta da rua a gritar a abertura, alguém que pára a distribuir publicidade nas caixas de correio do prédio ao lado: o cabelo vai crescendo no espelho da casa de banho
(ouvidos colados aos passos da porta)
- vinte anos é tanto tempo

a mulher de robe vermelho que se senta diariamente no sofá à espera deles, que a campaínha toque publicidade, que alguém venha, que alguém se importe
- publicidade, Senhora


a porta da rua que abre, o exercitar da voz, a publicidade que se deseja ter ainda que nem mais um panfleto entre na ranhura
-por favor, muito obrigado

todos os dias às 10:09 a felicidade a dizer-se ali
-por favor

o robe, os óculos escuros, ela própria, todos juntos a dizer;
a roupa do marido direita à vinte anos em cima da cadeira como se ele fosse sair do chuveiro de toalha a qualquer instante
- o meu marido só tomava duche de àgua fria

as calças, o camisa, os sapatos
- por favor, muito obrigado, eu quero publicidade, ainda bem que vieram porque eu estava a começar a ficar aflita com medo que não viessem hoje: eu aqui assim

a solidão dos dedos à noite à procura de sentido para a vida numa almofada de flanela gasta nas pontas pela sofreguidão da busca
(vinte anos é demasiado tempo)

- por favor, obrigado.