o azul do corpo
Os músculos da boca a contorcerem-se para falar o que o cérebro quer dizer, para dizer das coisas que o corpo sente; de ser ele próprio a viver do avesso no não-verosímil,
o traço da realidade
-no dia em que fiz seis anos a minha mãe era uma mulher bonita a brincar no quarto com o revolver de trinco automático do meu pai encostado à cabeça
os músculos da minha boca sempre foram desta cor de sangue quente e ao contrário de todos os meninos da creche eu era a única a perceber a importância da boca,
dos lábios,
dos dentes alinhados; a importância de sentir a boca com a ponta dos dedos nos lábios, de olhos levemente fechados durante o toque
as pontas a tocar insidiosamente no rosto, eu a sentir tanto
(a sentir tudo)
- sempre gostei mais de brincar com a minha boca e com os meus dedos do que com os meninos da minha idade; no fundo penso que sempre me preferi a mim
a contorção à maneira de meninos de Taiwan num circo pequeno de leões magros
- tenho tanto medo da sua morte como tenho do escuro, mãe
os músculos da boca e os meninos de Taiwan a falar-me baixinho ao ouvido
- quando conheci a minha mãe a sério ela era uma mulher lindíssima de pele fina que usava a nossa cozinha para fazer demonstrações da Tupperware
na casa que era nossa: eu e ela
(tenho a ideia de ter nascido quando tinha 5 anos, não antes disso)
da cadeira que ficava no fundo cozinha tirava crostas das feridas das pernas com as unhas para que voltassem a sangrar: que na emergência tu fizesses toda aquela gente sair da cozinha e existisses só para mim
para a minha boca,
para os meus dedos,
para o desenho dos meus lábios
a minha mãe a mostrar conjuntos e conjuntos de tupperware que iriam fazer reluzir prateleiras e nos fariam a nós conseguir o dinheiro da renda, da creche, das minhas bonecas
- a minha mãe é a mulher mais bonita que alguma vez os meus olhos viram
e ela haveria de vir: interromperia a sessão, as senhoras sorriam pela forma como me puxavas as pernas para baixo e me ajeitava a saia,
as senhoras a acharem-nos engraçadas às duas e a darem uma atençãozinha especial que no fim do dia pagaria o cinema
tontices engraçadas
( tu ao meu ouvido)
- pára com isso
toda a gente a achar-me uma pequena estranha, demasiado calada no quarto, demasiado quieta, demasiado triste: tu a achares impossível existir alguma coisa de errado comigo por ser tão igual a ti.
o traço da realidade
-no dia em que fiz seis anos a minha mãe era uma mulher bonita a brincar no quarto com o revolver de trinco automático do meu pai encostado à cabeça
os músculos da minha boca sempre foram desta cor de sangue quente e ao contrário de todos os meninos da creche eu era a única a perceber a importância da boca,
dos lábios,
dos dentes alinhados; a importância de sentir a boca com a ponta dos dedos nos lábios, de olhos levemente fechados durante o toque
as pontas a tocar insidiosamente no rosto, eu a sentir tanto
(a sentir tudo)
- sempre gostei mais de brincar com a minha boca e com os meus dedos do que com os meninos da minha idade; no fundo penso que sempre me preferi a mim
a contorção à maneira de meninos de Taiwan num circo pequeno de leões magros
- tenho tanto medo da sua morte como tenho do escuro, mãe
os músculos da boca e os meninos de Taiwan a falar-me baixinho ao ouvido
- quando conheci a minha mãe a sério ela era uma mulher lindíssima de pele fina que usava a nossa cozinha para fazer demonstrações da Tupperware
na casa que era nossa: eu e ela
(tenho a ideia de ter nascido quando tinha 5 anos, não antes disso)
da cadeira que ficava no fundo cozinha tirava crostas das feridas das pernas com as unhas para que voltassem a sangrar: que na emergência tu fizesses toda aquela gente sair da cozinha e existisses só para mim
para a minha boca,
para os meus dedos,
para o desenho dos meus lábios
a minha mãe a mostrar conjuntos e conjuntos de tupperware que iriam fazer reluzir prateleiras e nos fariam a nós conseguir o dinheiro da renda, da creche, das minhas bonecas
- a minha mãe é a mulher mais bonita que alguma vez os meus olhos viram
e ela haveria de vir: interromperia a sessão, as senhoras sorriam pela forma como me puxavas as pernas para baixo e me ajeitava a saia,
as senhoras a acharem-nos engraçadas às duas e a darem uma atençãozinha especial que no fim do dia pagaria o cinema
tontices engraçadas
( tu ao meu ouvido)
- pára com isso
toda a gente a achar-me uma pequena estranha, demasiado calada no quarto, demasiado quieta, demasiado triste: tu a achares impossível existir alguma coisa de errado comigo por ser tão igual a ti.
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