O Duque vende baguetes
Algumas noites são mais compridas do que os nossos dias. Prolongam-se no tempo até à nossa infância, quando nos separamos de um amigo e um cão nos acompanha até à porta de casa. Bebemos com certeza um pouco demais, como sempre bebemos demais. É quase madrugada e no caminho passamos pelos mesmos lugares por onde passámos desde sempre, sendo outros.
A memória, com a idade, torna-se geografia. E cada banco, cada jardim, cada pequena loja ou casa que se transforma, ou deixa de ser, perturba-nos e apaga-nos das páginas da sua história.
Estou com outro whisky na mão, sei que não devia mas nada posso fazer. O lugar é o O.K. onde o João serve ao balcão a cem metros do lugar onde sempre viveu. As paredes pintadas de fresco não mudam nada, a mesa de matraquilhos permanece e as de snooker também. Cascais é isto. Não as poliglotas esplanadas do Largo Camões onde os bares se chamam pubs mas isto. O O.K. Condenado a deixar de existir um dia, entre o hipódromo e o Pavilhão dos Desportos, frente ao Museu do Mar que por sua vez foi outrora o aristocrático Clube da Parada. O O.K., que já não ostenta o sinal luminoso com o stick resplandecendo as glórias de uma equipa, tantas vezes, campeã.
Aqui, como em nenhum outro lugar, encontro as caras que não vejo desde o liceu, a primária às vezes. O Caravela, por exemplo, não se chama Caravela. É assim o nome dele desde que me lembro porque mora por cima do restaurante com esse nome, o Rui. Não me peçam o apelido, tivessem perguntado antes. O Caravela não diz os cês, quando insulta alguém diz «pró ‘aralho!» mas toda a gente percebe.
Ele agora acabou o rol das lembranças e grita-me «O Duque vende baguetes!» e a frase, ali de whisky na mão, atinge-me com toda a surrealidade da absoluta falta de contexto fora da cabeça dele.
«O Duque vende baguetes? Qual Duque?».
«O Duque of Wellington, ‘aralho!».
Ó pá, eu nunca pus os pés nesse sítio, mais outro desses pubs á inglesa para os ingleses, em plena Rua Direita à esquerda de quem desce, nunca calhou. Mas ele sim. Devia ter grandes memórias do Duque, o ‘aravela. E agora, pelos vistos, o Duque já não existe e onde outrora existiu vendem-se baguetes e o Rui quer saber onde está, que não lhe troquem as voltas à memória, que não lhe curto-circuitem os neurónios como na noite em que decidiu ir beber um copo ao Duque e, afinal, saiu-lhe a baguete atravessada no caminho.
Estou no O.K. Muito mais tempo não. Estas conversas dão para o sentimento e aqui, em Cascais como em nenhum outro lugar, percebo tudo. Uma epifania ilumina-me o espírito, obscurece-me talvez fosse melhor dizer. Aqui, num lugar condenado à execução sem data marcada estão todos aqueles que não terão depois para onde ir: O João e o Miguel e o Mosca, cujo nome verdadeiro não me perguntem porque nunca o soube, embora todos os dias o veja na rua quando compro os jornais.
E nós, que os tratamos por tu porque crescemos com eles, no mesmo sítio que eles, mesmo ao lado deles, para onde vamos nesse caminho até casa com o cão que nos acompanha com whiskies a mais? Para onde vamos atravessando o jardim que nos ensinou a andar de bicicleta?
Adaptação de um artigo publicado no Dna, numa outra vida, agora que o O.K. deixou definitivamente de existir.
A memória, com a idade, torna-se geografia. E cada banco, cada jardim, cada pequena loja ou casa que se transforma, ou deixa de ser, perturba-nos e apaga-nos das páginas da sua história.
Estou com outro whisky na mão, sei que não devia mas nada posso fazer. O lugar é o O.K. onde o João serve ao balcão a cem metros do lugar onde sempre viveu. As paredes pintadas de fresco não mudam nada, a mesa de matraquilhos permanece e as de snooker também. Cascais é isto. Não as poliglotas esplanadas do Largo Camões onde os bares se chamam pubs mas isto. O O.K. Condenado a deixar de existir um dia, entre o hipódromo e o Pavilhão dos Desportos, frente ao Museu do Mar que por sua vez foi outrora o aristocrático Clube da Parada. O O.K., que já não ostenta o sinal luminoso com o stick resplandecendo as glórias de uma equipa, tantas vezes, campeã.
Aqui, como em nenhum outro lugar, encontro as caras que não vejo desde o liceu, a primária às vezes. O Caravela, por exemplo, não se chama Caravela. É assim o nome dele desde que me lembro porque mora por cima do restaurante com esse nome, o Rui. Não me peçam o apelido, tivessem perguntado antes. O Caravela não diz os cês, quando insulta alguém diz «pró ‘aralho!» mas toda a gente percebe.
Ele agora acabou o rol das lembranças e grita-me «O Duque vende baguetes!» e a frase, ali de whisky na mão, atinge-me com toda a surrealidade da absoluta falta de contexto fora da cabeça dele.
«O Duque vende baguetes? Qual Duque?».
«O Duque of Wellington, ‘aralho!».
Ó pá, eu nunca pus os pés nesse sítio, mais outro desses pubs á inglesa para os ingleses, em plena Rua Direita à esquerda de quem desce, nunca calhou. Mas ele sim. Devia ter grandes memórias do Duque, o ‘aravela. E agora, pelos vistos, o Duque já não existe e onde outrora existiu vendem-se baguetes e o Rui quer saber onde está, que não lhe troquem as voltas à memória, que não lhe curto-circuitem os neurónios como na noite em que decidiu ir beber um copo ao Duque e, afinal, saiu-lhe a baguete atravessada no caminho.
Estou no O.K. Muito mais tempo não. Estas conversas dão para o sentimento e aqui, em Cascais como em nenhum outro lugar, percebo tudo. Uma epifania ilumina-me o espírito, obscurece-me talvez fosse melhor dizer. Aqui, num lugar condenado à execução sem data marcada estão todos aqueles que não terão depois para onde ir: O João e o Miguel e o Mosca, cujo nome verdadeiro não me perguntem porque nunca o soube, embora todos os dias o veja na rua quando compro os jornais.
E nós, que os tratamos por tu porque crescemos com eles, no mesmo sítio que eles, mesmo ao lado deles, para onde vamos nesse caminho até casa com o cão que nos acompanha com whiskies a mais? Para onde vamos atravessando o jardim que nos ensinou a andar de bicicleta?
Adaptação de um artigo publicado no Dna, numa outra vida, agora que o O.K. deixou definitivamente de existir.
Gostei do texto comó 'aralho! Abraço daqui, da terra da alegria.
Para além de ter adorado a crónica gostaria apenas de acrescentar, a título de curiosidade, que na minha pequena terra, Santo Tirso, também existe um café (será mais um salão de jogos) com o nome O.K. Bar. A descrição do O.K. em Cascais confunde-se com a do O.K. Bar, em Santo Tirso. A mesa dos matrecos, os Snookers, as mesmas caras de sempre...
Parabéns pelo texto.
Obrigado Doctor Who,
São, de facto, microcosmos que se replicam. Espero que esse OK daí não desabe como este. Ab
Para ficar mais consistente não deveria ser o Du'e vende baguetes?
Gostei.
Beijo.
Bem observado, Maria. Mas isto não é ficção e o Rui só tem problemas no início das palavras. :)
Bj
voltas, paragens
e caminhos do vazio
Here are some links that I believe will be interested
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