24.7.06

O Duque vende baguetes

Algumas noites são mais compridas do que os nossos dias. Prolongam-se no tempo até à nossa infância, quando nos separamos de um amigo e um cão nos acompanha até à porta de casa. Bebemos com certeza um pouco demais, como sempre bebemos demais. É quase madrugada e no caminho passamos pelos mesmos lugares por onde passámos desde sempre, sendo outros.
A memória, com a idade, torna-se geografia. E cada banco, cada jardim, cada pequena loja ou casa que se transforma, ou deixa de ser, perturba-nos e apaga-nos das páginas da sua história.
Estou com outro whisky na mão, sei que não devia mas nada posso fazer. O lugar é o O.K. onde o João serve ao balcão a cem metros do lugar onde sempre viveu. As paredes pintadas de fresco não mudam nada, a mesa de matraquilhos permanece e as de snooker também. Cascais é isto. Não as poliglotas esplanadas do Largo Camões onde os bares se chamam pubs mas isto. O O.K. Condenado a deixar de existir um dia, entre o hipódromo e o Pavilhão dos Desportos, frente ao Museu do Mar que por sua vez foi outrora o aristocrático Clube da Parada. O O.K., que já não ostenta o sinal luminoso com o stick resplandecendo as glórias de uma equipa, tantas vezes, campeã.
Aqui, como em nenhum outro lugar, encontro as caras que não vejo desde o liceu, a primária às vezes. O Caravela, por exemplo, não se chama Caravela. É assim o nome dele desde que me lembro porque mora por cima do restaurante com esse nome, o Rui. Não me peçam o apelido, tivessem perguntado antes. O Caravela não diz os cês, quando insulta alguém diz «pró ‘aralho!» mas toda a gente percebe.
Ele agora acabou o rol das lembranças e grita-me «O Duque vende baguetes!» e a frase, ali de whisky na mão, atinge-me com toda a surrealidade da absoluta falta de contexto fora da cabeça dele.
«O Duque vende baguetes? Qual Duque?».
«O Duque of Wellington, ‘aralho!».
Ó pá, eu nunca pus os pés nesse sítio, mais outro desses pubs á inglesa para os ingleses, em plena Rua Direita à esquerda de quem desce, nunca calhou. Mas ele sim. Devia ter grandes memórias do Duque, o ‘aravela. E agora, pelos vistos, o Duque já não existe e onde outrora existiu vendem-se baguetes e o Rui quer saber onde está, que não lhe troquem as voltas à memória, que não lhe curto-circuitem os neurónios como na noite em que decidiu ir beber um copo ao Duque e, afinal, saiu-lhe a baguete atravessada no caminho.
Estou no O.K. Muito mais tempo não. Estas conversas dão para o sentimento e aqui, em Cascais como em nenhum outro lugar, percebo tudo. Uma epifania ilumina-me o espírito, obscurece-me talvez fosse melhor dizer. Aqui, num lugar condenado à execução sem data marcada estão todos aqueles que não terão depois para onde ir: O João e o Miguel e o Mosca, cujo nome verdadeiro não me perguntem porque nunca o soube, embora todos os dias o veja na rua quando compro os jornais.
E nós, que os tratamos por tu porque crescemos com eles, no mesmo sítio que eles, mesmo ao lado deles, para onde vamos nesse caminho até casa com o cão que nos acompanha com whiskies a mais? Para onde vamos atravessando o jardim que nos ensinou a andar de bicicleta?

Adaptação de um artigo publicado no Dna, numa outra vida, agora que o O.K. deixou definitivamente de existir.

9 Comments:

Blogger Ricardo António Alves said...

Gostei do texto comó 'aralho! Abraço daqui, da terra da alegria.

9:46 da tarde  
Blogger Doctor Who said...

Para além de ter adorado a crónica gostaria apenas de acrescentar, a título de curiosidade, que na minha pequena terra, Santo Tirso, também existe um café (será mais um salão de jogos) com o nome O.K. Bar. A descrição do O.K. em Cascais confunde-se com a do O.K. Bar, em Santo Tirso. A mesa dos matrecos, os Snookers, as mesmas caras de sempre...

Parabéns pelo texto.

10:08 da tarde  
Blogger João Villalobos said...

Obrigado Doctor Who,
São, de facto, microcosmos que se replicam. Espero que esse OK daí não desabe como este. Ab

10:21 da tarde  
Blogger Maria Carvalhosa said...

Para ficar mais consistente não deveria ser o Du'e vende baguetes?

Gostei.

Beijo.

4:49 da tarde  
Blogger João Villalobos said...

Bem observado, Maria. Mas isto não é ficção e o Rui só tem problemas no início das palavras. :)
Bj

7:33 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

voltas, paragens
e caminhos do vazio

12:38 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Here are some links that I believe will be interested

2:15 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Here are some links that I believe will be interested

9:35 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Hey what a great site keep up the work its excellent.
»

11:18 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home