24.7.06

A minha vida paralela (2)

Saíram outras pessoas da taberna, do interior do grupo recreativo, e todas me olharam. Alguém repetiu “O Manel da Lúcia!” e parecia espantado; outro homem acrescentou, divertido: “Voltou, o sacana!”.
Os tipos estavam ébrios. Caras patuscas, narizes vermelhos, sorrisos exagerados, vozes rastejando. Rodearam-me, mas sorridentes e interessados. Tentei negar a identificação, mas levaram-me para o interior do grupo recreativo, para dentro do bar atascado, e puseram-me um copo à frente. Que tinha de beber para comemorar o regresso, disse um deles, e chegaram outros homens, atraídos pela comoção geral: houve palmadas alegres nas minhas costas, alguém que notava que eu vinha mais gordo, outro a concluir que parecia em grande forma, igualzinho ao que sempre fora.
O equívoco era tão extenso, que a situação não deixava de ser engraçada, por isso não resisti. Deixei-me levar pela torrente de emoções daqueles desconhecidos, sem perceber patavina do que diziam, a tentar agarrar no ar o débil cordel de uma história que me arrastava como uma brisa leva um pequeno insecto.
(...)
Nas entrelinhas do que diziam, fui percebendo que eu, Manel da Lúcia, desaparecera dois anos antes, sem razão aparente. Aqueles eram os meus amigos, digo assim, meus amigos, embora jamais tivesse visto algum deles. Iam contando o que se passara, numa confusa sucessão de informações inúteis, entre as que desmentiam a história que até ali eu formulara, depois desfazendo de novo o mosaico, reposicionando cada pedaço, numa reconstrução sem nexo...
(...)
Enfim, desaparecera durante dois anos; tinham julgado que eu fora morto numa luta de bandos criminosos; depois, admitiram que emigrara para longe; fui sendo esquecido; e a Lúcia, inconsolável, coitada, deixada para trás, já a tinham chamado. Foi ao perceber este pedaço que me comecei a assustar...
(...)
e, de repente, ali estava ela. Uma figura franzina, de mulher magra e triste. Muito portuguesa, vestida de escuro, com a face pálida e mãos rudes. Uma cara que, embora não passasse muito dos trinta, começava a ser roída por rugas precoces, que lhe tornavam o olhar melancólico e pesado. E, em contraluz (recortava-se na porta, com a luz solar da rua por detrás) causara a imediata suspensão do vozear bêbado dos homens, a figura que adivinhei ser Lúcia, a minha mulher, disse apenas, numa voz de aflição:
“Onde é que ele está?”
Os homens afastaram-se de mim; ela observou-me (eu estava bem iluminado pela luz da rua); Lúcia levara a mão à boca, para suspender um grito; aproximou-se, numa comoção; ficou com os olhos enormes e míopes a um palmo da minha cara. E, ao não me reconhecer, o esgar de consternação, a repugnância, o medo insólito, um pequeno grito de dor...
Fui atrás dela, ao perceber os terríveis efeitos daquele equívoco. Os bêbados tinham-me confundido e chamado a mulher do homem cuja identidade eu tomara por alguns minutos. Era como se eu, porventura involuntariamente, estivesse a magoar aquela Lúcia pela segunda vez, mas agora de forma mais cruel ainda
“Mas, espere, é um terrível equívoco”, disse eu, a persegui-la pela rua.
Ela andara vinte metros e, de súbito, ao sentir-me ali, enfrentou-me, num desespero:
“Porque é que não és tu?”
Como se aquilo fizesse sentido, segurei-a pelo braço, tentado fazê-lo com doçura:
“Foi um engano” disse eu, “confundiram-me com o seu marido... Lamento”
Lúcia acalmara-se. Por um momento, que se prolongou inexplicavelmente, imaginei que Lúcia era, de facto, a minha mulher; imaginei a minha vida paralela, estranhamente desabitado da própria realidade. Depois, a sensação dissipou-se. Ela conformara-se com a sua solidão, a sua perda, ou lá o que era, destino, talvez, acaso.
E ali nos separámos. Lúcia, sofrida; eu, de novo no exterior daquele enigma.
Desci pelo caminho que antes tomara, até à avenida perpendicular.

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2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

fantástico! gostei mesmo
é bom
ler umas prosas bem conseguidas..
de quando em vez

12:18 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Greets to the webmaster of this wonderful site. Keep working. Thank you.
»

4:10 da tarde  

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