20.7.06

PRAIA CHEIA

Perguntou-lhe ele, na sua voz de flauta dos Andes sobre um fundo sonoro de fim de dia em praia vazia: “Se pudesse escolher, de que mais gostava neste momento?”
Era hora da baixa-mar num princípio de Outono e do Atlântico soprava um vento noroeste. Ela fitou o céu no ponto mais distante e depois fitou-o a ele surpreendida, quase incrédula, como se de repente lhe entreabrissem ao longe as portas do paraíso. Tentou avaliar o grau de proximidade entre ambos e daí apurar a legitimidade da resposta. Hesitou. O coração ameaçou-lhe a garganta, depois abandonou-a por instantes. A medo, com a coragem a acender e a apagar, a voz aos pulos lá dentro, mil vezes ponderando/pensando dizer e não dizer, aventurou-se num sussurro: “De sentir as suas mãos…”
Às primeiras sílabas julgou que se precipitava no vazio. Por milésimos de segundo quis fugir ao silêncio vertical que se criara. O movimento das ondas parou e um leve odor a algas, que ela perdeu, inundou o ar. Ouviu-o a ele inspirar com a surpresa e depois aquela voz de montanha, trazendo em si todo o tempo que há: “Pois o que eu mais quero neste momento é satisfazer esse seu desejo.”
A ela pareceu-lhe que a lua desorbitava de vez. Não havia ondas, não havia marés, apenas uma imensa massa de água quieta, expectante. Os olhos saltaram-lhe da areia felizes, olhos agradecidos. Uma parcela de tempo inmedível pairou nesse momento entre os dois, ampliou o olhar dele sobre o rosto dela, e voou depois para longe, arrastando sombras de sorrisos. Não ouviram o assobio do vento por entre uma fresta enorme nas sedimentares a sul da praia, nem lhes soou o guinchar das gaivotas na reconquista diária/tardia do areal deserto.
E ela com a breve sensação de que a alma lhe escapava quando as mãos objecto do seu desejo se aventuraram nas linhas do seu rosto, ao ritmo pausado de quem sabe que a vida se abraça por momentos: centímetro a centímetro, sinal a sinal, cantos dos olhos, testa, a linha direita do nariz, lábios, curva do queixo, o pescoço, talvez.
Uma mistura aromática de iodo do mar e perfume masculino perpassou-lhe cada célula, poeiras de luz (pareceu-lhe) iluminaram-lhe os sentidos enquanto demoradamente lhe beijou o interior do pulso, enquanto escutou um prazer difuso que invadia também o corpo dele, seduzindo-lhe o cérebro e o coração e devolvendo-se, zeloso, à superfície da pele.
Ao reabrirem os olhos havia muito menos luz ambiente e as ondas retomavam o barulho/marulho habitual.
Indiferentes ao bailado lento das mãos, à ondulação dos olhares dizendo tudo sem dizerem nada, ao beijo super-nova que incontrolável engoliu os contornos dos dois corpos, pilritos-maçaricos em bando saltitavam àquela hora à beira-mar.
E saltitaram até assistirem confusos a um sol que se reergueu de poente mergulhando a noite num amarelo líquido. E esvoaçaram assustados num espaço sem tempo, em praia vazia que já não era ali. Num tempo sem sentido único, num mundo que rodava ao contrário e que podia acabar assim.

5 Comments:

Blogger Margarida said...

"...com a coragem a acender e a apagar, a voz aos pulos lá dentro". Nunca o conseguiria expressar assim, mas é isto mesmo que se sente. Gostei muito deste quadro de sentimentos.

10:26 da tarde  
Blogger Cristina Leimart said...

Obrigada, Margarida. Por ler, por gostar e pelo comentário.
CL

5:28 da tarde  
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