20.7.06

COLA

Ao acordar só se lembrava de lhe terem colado as unhas uma a uma, com todo o rigor. Unhas… A boca sabia-lhe àquela partezinha azeda das uvas quando começam a estragar-se. Uvas.
Procurou uma relação com um sonho anterior. Nele galgava sem sobressalto uma calçada portuguesa ladeada por dois muretes caiados de novo/há pouco, deixando para trás uma praça encolhida entre prédios decrépitos, cheia de carros de oficina com amigos lá dentro, um dos carros tossindo golfadas de cor antracite que se expandiam em nuvens translúcidas e o perseguiam calçada fora. Procurou aí.
Mas na sessão de psicoterapia o clínico desenganou-o firmemente: não tem nada a ver um sonho com o outro! Isso das unhas, à luz dos conhecimentos de psicologia actuais e até nova ordem, é muito simples: você, Raul, não se sente, ainda que no plano do subconsciente, com capacidade para agarrar a vida pelos cornos, se me permite o vernáculo. Unhas são garras, simbolizam a nossa competência em controlar o próprio percurso de vida, entende? Já a calçada portuguesa…
Desculpe, eu?! Eu não me sinto, tem a certeza?... Será por ontem à noitinha ter perdido a lata para me impor junto da senhoria quanto ao assunto da humidade no corredor? Hã, o que é que acha?
Ó Raul, a questão é o que é que você acha. Isto aqui não se joga com certezas, mas sim com interpretações dotadas de alguma flexibilidade, que ou fazem sentido ou não fazem. O que é que me diz?
O que me diz, pergunto eu, doutor. Eu sei lá. Nem é que me tenha doído, nem sequer foi por sensibilidade estética.. O que eu sei é que a visão das unhas coladas nas bordas das orelhas, cinco de cada lado alinhadinhas, compridas, parecia eu uma ave exótica, me deixou todo arrepiado, e subconsciente ou não ainda trago o cheiro da cola de sapateiro entranhado no nariz.

2 Comments:

Blogger luisnaves said...

Bem-vinda, Cristina. Excelente estreia nos prazeres

12:29 da tarde  
Blogger Cristina Leimart said...

Obrigada, Luís. :))

5:30 da tarde  

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