a minha vida paralela (1)
O bairro colonial fica numa colina virada para ocidente. Não é muito mais do que um conjunto reticular de ruas, alinhamento imperfeito de casas dos anos 40, algumas mais antigas. Possui o mesmo rígido bordado de carros estacionados que enfeita outros bairros da cidade, linhas paralelas, metálicas e coloridas. Mas quando se observa com cuidado, olhando os habitantes, descobre-se uma diferença: o bairro colonial é mais étnico, tem africanos e brasileiros, culturas variadas. Se alguém entrar ali, pode ter a sensação de entrar num mundo separado.
O bairro nunca faz parte do meu roteiro, mas naquele dia entrei pela rua principal, por me querer afastar de mim, por estar zangado com a vida: tivera uma banal discussão no escritório; (ou em casa?) Já só recordo o estado de alma, o estar fora de mim. Saí, num repente, a bater com a porta, para espairecer. Andei por uma avenida, a ver a gente que passava. Depois, precisei de me embrenhar numa solidão ainda mais funda.
Subi, sombrio, a calçada íngreme do início do bairro colonial. Na rua perpendicular, que deixara, passavam multidões, mas poucos se desviavam na direcção que eu tomara; questões de fama do lugar, talvez.
Os prédios tinham o estuque estalado, persianas de janela sujas, roupa pendurada ao sol, grafitos nas paredes (uma diferente escrita, uma língua separada), caixotes do lixo a transbordar. E ouvia-se, vindo do interior de cada casa, um rumor de vida, vozes e murmúrios, como se houvesse fantasmas em cada pedra daquele castelo, pois que tudo aquilo era somatório de fragmentos.
(...)
Dizem que a oscilação de uma flor ao vento pode ter implicações cósmicas. Sinceramente, não acredito. Mas, por vezes, essa ideia falsa faz-me pensar nos complexos caminhos do acaso. O que me levava ali, senão uma torrente irresistível de decisões demasiado frágeis para serem materiais? E porquê naquele tempo específico, naquela situação e conjuntura, cinco minutos desfasado do gato sonolento que não vi porque se distraiu com um passarinho esvoaçante? Sincronizado exactamente com o gesto da mulher que se postara à sombra, na porta da sua loja de objectos inúteis e que me viu avançar rua acima, sei lá com que pensamentos na mente? E as nossas existências perpendiculares cruzaram-se naquele exacto ponto do tempo e do espaço, naquelas únicas circunstâncias, e não em outras distintas, sabia-se lá por que vontade! E, alheio a essa coincidência, subi como caminha o sonâmbulo que não sabe para onde vai, ou que sonha algo de distinto da realidade que os seus passos incertos produzem...
(...)
Havia uma espécie de planalto, em que as ruas perdiam a inclinação. As mesmas calçadas portuguesas, que pareciam tecidos roídos pelas traças. A patine nas fachadas, de tom pastel, as pequenas lojas cheias de misteriosos nadas.
(...)
Tinha marchado muito e a minha fúria dissipara-se. Olhava as coisas que me rodeavam, já com um gosto diferente. De certa maneira, mudara, embora não soubesse o que mudara em mim. Então, passei em frente a um grupo recreativo, um café com grupo recreativo, com pessoas dentro, lembro-me vagamente, sem saber já o nome que estava no cimo da porta larga, de alumínio. Recordo-me bem do símbolo e da bandeira, igual à da Itália, mas com uma estrela no campo branco. E já tinha passado quando o homem magro que estava à porta, a observar-me, desconfiado, deitou a beata de cigarro ao chão e fez assim: “Pst! Pst!”.
Não gosto de reagir a chamamentos daqueles, embora soubesse que ele se dirigia a mim, visto como intruso.
“Ó Manel”, insistiu ele, a estender o braço na minha direcção, depois virando-se para dentro, gritou: “Venham ver, tá ali o Manel da Lúcia”.
Aquilo era comigo, não o podia ignorar, embora não me chame Manel e não conheça nenhuma Lúcia. Não senti ameaça, ou algo assim, percebi de imediato que tinha sido confundido com outra pessoa. Estava calmo, via agora o mundo no seu lado favorável e virei-me para o homem fininho, disposto a esperar por ele, a enfrentá-lo, a rectificar o equívoco.
(...)
O bairro nunca faz parte do meu roteiro, mas naquele dia entrei pela rua principal, por me querer afastar de mim, por estar zangado com a vida: tivera uma banal discussão no escritório; (ou em casa?) Já só recordo o estado de alma, o estar fora de mim. Saí, num repente, a bater com a porta, para espairecer. Andei por uma avenida, a ver a gente que passava. Depois, precisei de me embrenhar numa solidão ainda mais funda.
Subi, sombrio, a calçada íngreme do início do bairro colonial. Na rua perpendicular, que deixara, passavam multidões, mas poucos se desviavam na direcção que eu tomara; questões de fama do lugar, talvez.
Os prédios tinham o estuque estalado, persianas de janela sujas, roupa pendurada ao sol, grafitos nas paredes (uma diferente escrita, uma língua separada), caixotes do lixo a transbordar. E ouvia-se, vindo do interior de cada casa, um rumor de vida, vozes e murmúrios, como se houvesse fantasmas em cada pedra daquele castelo, pois que tudo aquilo era somatório de fragmentos.
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Dizem que a oscilação de uma flor ao vento pode ter implicações cósmicas. Sinceramente, não acredito. Mas, por vezes, essa ideia falsa faz-me pensar nos complexos caminhos do acaso. O que me levava ali, senão uma torrente irresistível de decisões demasiado frágeis para serem materiais? E porquê naquele tempo específico, naquela situação e conjuntura, cinco minutos desfasado do gato sonolento que não vi porque se distraiu com um passarinho esvoaçante? Sincronizado exactamente com o gesto da mulher que se postara à sombra, na porta da sua loja de objectos inúteis e que me viu avançar rua acima, sei lá com que pensamentos na mente? E as nossas existências perpendiculares cruzaram-se naquele exacto ponto do tempo e do espaço, naquelas únicas circunstâncias, e não em outras distintas, sabia-se lá por que vontade! E, alheio a essa coincidência, subi como caminha o sonâmbulo que não sabe para onde vai, ou que sonha algo de distinto da realidade que os seus passos incertos produzem...
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Havia uma espécie de planalto, em que as ruas perdiam a inclinação. As mesmas calçadas portuguesas, que pareciam tecidos roídos pelas traças. A patine nas fachadas, de tom pastel, as pequenas lojas cheias de misteriosos nadas.
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Tinha marchado muito e a minha fúria dissipara-se. Olhava as coisas que me rodeavam, já com um gosto diferente. De certa maneira, mudara, embora não soubesse o que mudara em mim. Então, passei em frente a um grupo recreativo, um café com grupo recreativo, com pessoas dentro, lembro-me vagamente, sem saber já o nome que estava no cimo da porta larga, de alumínio. Recordo-me bem do símbolo e da bandeira, igual à da Itália, mas com uma estrela no campo branco. E já tinha passado quando o homem magro que estava à porta, a observar-me, desconfiado, deitou a beata de cigarro ao chão e fez assim: “Pst! Pst!”.
Não gosto de reagir a chamamentos daqueles, embora soubesse que ele se dirigia a mim, visto como intruso.
“Ó Manel”, insistiu ele, a estender o braço na minha direcção, depois virando-se para dentro, gritou: “Venham ver, tá ali o Manel da Lúcia”.
Aquilo era comigo, não o podia ignorar, embora não me chame Manel e não conheça nenhuma Lúcia. Não senti ameaça, ou algo assim, percebi de imediato que tinha sido confundido com outra pessoa. Estava calmo, via agora o mundo no seu lado favorável e virei-me para o homem fininho, disposto a esperar por ele, a enfrentá-lo, a rectificar o equívoco.
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Etiquetas: conto
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